Ao portal ‘Observatório da Imprensa’, jornalista contou detalhes da prisão.
Grávida do primeiro filho, foi deixada nua junto a cobra em quarto escuro.
Mais de 40 anos se passaram e a jornalista Miriam Leitão ainda aguarda um pedido de desculpas das Forças Armadas. No final de 1972, grávida, ela foi presa pelo regime militar. Levada ao quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército, em Vitória, no Espírito Santo, foi trancada nua e grávida em um cômodo, tendo uma cobra como companhia e ameaça. Em dois meses de prisão, chegou aos 39 quilos, 11 a menos do que quando chegou. Em depoimento ao jornalista Luiz Cláudio Cunha, publicado nesta terça-feira (19) no “Observatório da Imprensa”, ela revela os detalhes do que sofreu no cárcere.
Miriam conta que Luiz Cláudio a vinha tentando convencer a contar sua história para o público, mas ela resistia. “Nunca achei que minha história fosse importante, não quis tornar público detalhes, outros brasileiros sofreram mais que eu, muitos perderam a vida. Minha história ficou apenas no primeiro capítulo diante do que aconteceu com outras pessoas”, disse.
Mas, segundo disse, sem mágoas ou ódio, nem nunca ter pedido indenização nem querer isso, decidiu contar, mesmo não achando seu caso relevante dentro do contexto das perseguições políticas.
“Acho que fundamental do ponto de vista institucional as Forças Armadas pedirem desculpas ao país pelos erros que cometeram, porque assim foi em outros países. Assim se começa uma nova história. Hoje, alunos de colégios militares estudam em livros com narrativas que não correspondem aos fatos. É desse ato de reconhecimento do erro que nasce a certeza de que o erro não vai ser repetido”, declarou.
Apesar do impacto do novo relato, a jornalista ressalta que o depoimento ao ‘Observatório da Imprensa’ não foi a primeira vez em que denúnciou a tortura sofrida e os requintes de crueldade, como o uso de animais para aterrorizar os presos, foi em 1973. “A primeira vez que falei essas coisas publicamente foi em 1973 diante do Tribunal Militar. Está no processo que me julgava, a cobra, os cachorros. Colocaram de forma reduzida, mas falei isso em 1973”, explicou a jornalista, que na época foi processada com base na Lei de Segurança Nacional.
Seu companheiro à época, Marcello Neto, preso juntamente com ela, passou nove meses presos em uma solitária.
A jornalista disse que falando sobre o caso quer contribuir “um grãozinho que seja” para o reconhecimento de erros cometidos pelo estado durante a ditadura:
“Decidi comigo mesma e minha consciência e estou tranquila com isso. Sei que estou me expondo, é uma história dolorosa, mesmo sabendo que foi menor, comparando com a de outras pessoas. Tenho cicatrizes, mas não me arrependo de ter dado esse depoimento. Não tenho mágoa nem ódio, só gostaria que minha palavra ajudasse num esforço nacional para que reconheçam o erro”.
Segundo Míriam, as Forças Armadas recentemente fizeram um documento “desrespeitoso à nossa inteligência e à nossa memória”.
“Afirmaram que não houve desvio de função dentro das instituições militares e nós sabemos quantos foram torturados e mortos dentro das instituições militares. Hoje as Forças Armadas prestam um serviço maravilhoso ao país em várias áreas. Mas é preciso romper com esse passado, e reconhecer o erro para o próprio bem das Forças Armadas”, completou.
Dr. Pablo
No texto de Luiz Cláudio, são relatadas as torturas sofridas, entre agressões e ameaças, a vulnerabilidade da nudez, o terror do inimigo invisível na forma de uma cobra no escuro. Luiz Cláudio diz no texto que “é muito provável que um dos seus algozes tenha sido Paulo Malhães, o coronel do Exército morto meses atrás, depois de revelar atrocidades perpetradas contra seres humanos indefesos que ele e seus comparsas torturaram e mataram”.
Míriam diz que não pode afirmar que o Dr. Pablo, o homem que chefiava os algozes e que levou a cobra até a sala onde ela estava presa, seja de fato Malhães, embora os indícios sejam muitos. Segundo explicou, o homem de cabelos pretos era chamado por todos de Dr. Pablo, ao mesmo tempo em que era sabido que Malhães usava o codinome de Dr. Pablo e que tinha também o hábito de usar uma cobra na tortura aos presos. Mas Miríam diz que quando viu Malhães mais recentemente não pode garantir que era a mesma pessoa que a torturou. Mas para ela, segundo disse, não é isso que importa:
“Tenho 61 anos, 4 netos, estou ativa e saudável, mas sei que estou na parte final da vida, e quero que o Brasil nunca mais cometa isso. A democracia não está ameaçada, mas as instituições têm que fazer seu papel. As Forças Armadas têm que reconhecer o erro”, ressaltou.
O relato completo está disponível no Observatório da Imprensa.
Fonte: G1