Foi no Nordeste, região que era apontada até 2017 como principal responsável pela escalada de homicídios no Brasil, onde as taxas mais caíram no primeiro semestre deste ano – total de 27%. A ação mais focada nos presídios, ajuda a entender a permanência da tendência de queda dos homicídios no Brasil.
Além das ações dos governos, para entender a queda também é necessário compreender a nova forma de organização criminal no país. Esta nova cena vem sendo protagonizada na última década por grupos que se articulam a partir dos presídios em redes que estendem até o lado de fora dos muros. Nesse contexto, as oscilações nas taxas de violência podem variar de acordo com as rivalidades ou alianças em cada estado, já que a competição no mercado lucrativo das drogas pode produzir violência.
Os governos capazes de impor custos aos grupos violentos – a partir da identificação dos mandantes de assassinatos ou identificação dos autores das mortes, tarefa que atualmente tem sido feita a partir de escutas em presídios – tendem a induzir a tréguas ou acordos entre rivais para a diminuição de conflitos.
A queda
O ano de 2017 mostrou com clareza como essa dinâmica criminal pode ser determinante nas variações dos homicídios dos estados. Em meados de 2016, duas facções nacionais – Primeiro Comando da Capital e Comando Vermelho – com presença em presídios de diversas unidades da federação romperam.
As consequências estouraram meses depois, em janeiro, quando uma série de três rebeliões ocorreu em presídios do Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte. Os conflitos se espalharam para as ruas e 2017 acabou como o mais violento da história do país, batendo o recorde de 2016. Nove estados registraram mais de 40 homicídios por 100 mil habitantes, todos eles na região Norte e Nordeste.
Ao longo de 2018, contudo, no último ano do governo do presidente Michel Temer, ao contrário do que se esperava, a situação foi se distensionando dentro e fora dos presídios. Havia duas razões principais para que os conflitos no sistema penitenciário começassem a arrefecer.
Primeiro, porque boa parte dos chefes desses grupos criminosos já estava presa. Sob a tutela do estado, estes chefes ficavam mais vulneráveis. A situação deles passou a piorar depois que os governos tomaram o susto com os massacres e investiram nos trabalhos de inteligência dentro do sistema penitenciário para identificar chefes e comandos.
Acompanhados de perto nas escutas autorizadas pela Justiça, muitos dos que davam ordens e promoviam massacres acabavam sendo transferidos para os presídios federais, onde passavam a cumprir um cotidiano disciplinar bem mais duro. Dessa forma, se explosões como as de janeiro puderam ocorrer, os meses seguintes provocaram consequências para esses grupos. Os chefes e a elite das gangues, afinal, estavam vivendo nos presídios e sob a mira do Estado.
Entender essa condição de vulnerabilidade ajuda a compreender um segundo motivo para a queda dos homicídios. O pragmatismo e espírito empresarial desses grupos criminais e a capacidade de determinar comportamentos na rede que comandam. Isso porque, mesmo presos, eles administram a venda de drogas, um negócio com lucros milionários.
Nesse ramo, com o passar do tempo e as transformações no setor, foi ficando evidente que o melhor é evitar problemas e guerras. Essa percepção foi levantada principalmente pelo PCC. Apesar dos conflitos estaduais localizados, a máxima do PCC vem se consolidando por sua racionalidade: o crime fortalece o crime.
Essa situação acaba impulsionando os concorrentes do mercado criminal a cessar conflitos e as mortes significam custos elevados e redução nos lucros obtidos com as drogas. Ainda mais quando são pressionados pelas autoridades. A trégua, dessa forma, pode interessar a todos os concorrentes, desde que os rivais saibam que seus respectivos oponentes não farão movimentos de agressão e expansão.
Esta compreensão foi se consolidando ao longo de 2018, conforme as autoridades agiam dentro dos presídios e desestimulavam novos conflitos. Ações de inteligência foram tomadas em estados como Paraíba, Rio Grande do Norte, Acre, Pará e Ceará, por exemplo. Além disso, PCC e CV recuaram e os massacres foram suspensos.
Apesar de 2018 ter sido um ano violento, a promessa da escalada não ocorreu. O ano acabou de forma surpreendente com a diminuição generalizada dos homicídios. A redução foi a maior em 11 anos de medição e as taxas caíram em 24 das 27 unidades da federação. O clima nos presídios, segundo relatos em diversas secretarias estaduais em 2018, melhorou bastante, afetando também as relações e rivalidades do lado de fora.
A tendência de redução seguiu ao longo de 2019, apesar da ocorrência de dois grandes massacres, o primeiro em maio no Amazonas e o segundo em julho no Pará. Ao contrário do que ocorreu em 2017, no entanto, os conflitos estiveram fortemente ligados a rivalidades regionais e não a conflitos entre facções nacionais.
O primeiro deles ocorreu em razão de uma disputa entre chefes da Família do Norte – a mesma que em 2017 realizou o massacre contra presos do PCC. Já a de Altamira foi decorrência do conflito promovido por um grupo regional, conhecido como Comando Classe A.
No cenário nacional, contudo, a ação de inteligência dos governos dentro dos presídios e a percepção de vulnerabilidade dos chefes parecem ter sido suficientes para evitar grande acirramento de conflitos. A transferência de 22 lideranças do PCC para presídios federais, segundo informações de pessoas que acompanharam a medida, longe de acirrar as rivalidades, parecem ter servido para estreitar alianças na tentativa de pressionar o Estado a flexibilizar as regras vigentes nos presídios federais.
A redução das mortes, nessa nova mentalidade empresarial de grupos ligados ao mercado de droga, funciona como um respiro. Há motivos para celebrar, já que ter um mercado de drogas não violento, como os da Europa e dos Estados Unidos, é melhor do que ter um mercado com chefes autodestrutivos que ajudam a promover matanças. Para manter a tendência de queda e evitar que esses grupos se fortaleçam economicamente, vai ser preciso usar a capacidade de inteligência e articulação do Estado.
Informações: Bruno Paes Manso, Núcleo de Estudos da Violência da USP/G1