”Pobre Brasil! Durante muito tempo ficaremos sem transformações estruturais”

Entrevista especial com Reinaldo Gonçalves

“O governo Dilma seguirá a mesma linha do governo Lula via arranjos com as oligarquias, os bancos, as grandes empreiteiras e o setor de agronegócio. Não houve qualquer transformação relevante nas relações, estruturas e processos políticos no Brasil nos anos Lula. O mesmo ocorrerá no governo Dilma”, avalia o economista.

O economista Reinaldo Gonçalves não vê mudanças estruturais na política econômica do atual governo e menciona que os próximos quatro anos serão de continuidade da gestão Lula

As primeiras medidas econômicas adotadas pela presidente Dilma Rousseff são decorrentes, na avaliação do economista Reinaldo Golnçalves, da “herança nefasta de Lula”. Segundo ele, Dilma mantém a “síndrome de prefeito do interior”, quer dizer, faz ajuste fiscal nos primeiros anos do governo para sobrar dinheiro próximo às eleições. Gonçalves também critica a atual política de reajuste do salário mínimo, que eleva o valor de acordo com a taxa de crescimento dos dois anos anteriores. “O reajuste do salário mínimo no início do ano deve incorporar expectativas quanto à evolução macroeconômica do país (crescimento e inflação) no ano em curso”, assinala.

Em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail, o economista também comenta a criação do grupo China, anunciado recentemente, e lamenta: “a criação de grupo de estudos dentro do Executivo é um indicador de que nada de relevante será feito”. Para ele, a relação bilateral China/Brasil “reproduz o modelo centro/periferia”. E argumenta: “O que a China quer é controlar fontes fornecedoras de matérias-primas e criar mercados para seus bens e serviços de alto valor agregado”.

Reinaldo Gonçalves é formado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Obteve o título de mestre em Economia, pela Fundação Getúlio Vargas – FGV-RJ, e de doutor em Letters And Social Sciences pela University of Reading, na Inglaterra. Atualmente, leciona na UFRJ. É autor de Economia internacional. Teoria e experiência brasileira (Rio de Janeiro: Elsevier, 2004) e Economia política internacional. Fundamentos teóricos e as relações internacionais do Brasil (Rio de Janeiro: Elsevier, 2005).

Confira a entrevista

IHU On-Line – As primeiras ações de Dilma depois de assumir a presidência foram ajuste fiscal e aumento dos juros. O que isso significa e demonstra em relação à economia brasileira?

Reinaldo Gonçalves – A questão central é a herança nefasta de Lula. As primeiras ações de Dilma demonstram três elementos. O primeiro é que o ajuste em 2010 agravou desequilíbrios macroeconômicos (contas externas, endividamento das famílias e empresas, bolha de preços de imóveis, pressão inflacionária, etc.). O segundo é que este ajuste foi influenciado enormemente pelo oportunismo do governo Lula em ano de eleições gerais. E o terceiro é que no governo Dilma é mantida a “síndrome de prefeito do interior”. Ou seja, arrocho nos dois primeiros anos de governo e extrema liberalidade no final do mandato. Assim, comprime-se a base para se obter resultados mais visíveis no período de reeleição. Em resumo, é a captura da gestão macroeconômica pelo oportunismo eleitoral. É o nosso problema estrutural de combinação de oportunismo político-eleitoral com instituições fracas e sociedade invertebrada. Como parte da herança nefasta de Lula não houve qualquer mudança a respeito deste problema. Muito pelo contrário.

IHU On-Line – Por quais motivos o crescimento tende a cair de 7,5% para 4 ou 5% este ano?

Reinaldo Gonçalves – O forte crescimento econômico em 2010 permitiu a reversão da recessão provocada pela crise global ao mesmo tempo em que foi funcional para os grupos políticos dirigentes, tendo em vista o ciclo eleitoral. Por outro lado, há o agravamento dos desequilíbrios macroeconômicos. Além da pressão inflacionária, verifica-se a forte deterioração das contas externas. Passado o período de eleições, os desequilíbrios macroeconômicos são, então, enfrentados com as medidas ortodoxas de políticas monetárias, creditícia e fiscal restritivas. Em consequência, a expectativa é de não sustentabilidade de elevadas taxas de crescimento do PIB no médio prazo. O Fundo Monetário Internacional – FMI, por exemplo, tem como previsão para o Brasil crescimento real do PIB pouco superior a 4,0% em 2011-12. Ainda segundo as previsões do FMI, o Brasil deve ocupar posições próximas da média e medianas mundiais. As taxas previstas para 2011-12 estão próximas da média do governo Lula (4,0%) e estão abaixo da média secular do país (4,5%). No futuro próximo, a expectativa é de fraco desempenho pelos padrões históricos do Brasil e nenhum avanço na posição internacional. Estes fatos tornam-se ainda mais graves com a trajetória de piora evidente das contas externas, com fortes desequilíbrios de fluxo e de estoque; ou seja, vulnerabilidade externa. Trata-se, aqui, de parte da herança nefasta de Lula.

IHU On-Line – O senhor é autor de um estudo sobre a evolução da renda no governo Lula em comparação com a perspectiva histórica. Quais suas conclusões? A partir desses dados, quais as perspectivas para os próximos anos do governo Dilma?

Reinaldo Gonçalves – A análise da evolução da renda do Brasil durante o governo Lula nos permite chegar às seguintes conclusões: 1) fraco desempenho pelos padrões históricos do país; 2) muito fraco desempenho quando comparado com outros presidentes; 3) país fortemente atingido pela crise global em 2009; 4) o processo de ajuste frente à crise global foi influenciado significativamente pelo ciclo eleitoral e oportunismo político em 2010 e não se sustenta em 2011-12; e, 5) retrocesso relativo no conjunto da economia mundial. Este trabalho pode ser acessado em .

Perspectivas

Sem dúvida alguma há continuidade. É mais do mesmo. A única vantagem é não sofrermos o tsunami diário de hipocrisia e cinismo do Lula. Vale notar que Dilma foi escolhida mais pelos seus defeitos do que por eventuais virtudes. Foi escolhida por ter se mostrado como, talvez, a mais dócil serviçal no governo em que Lula era o centro do poder. Lula mandava e o resto obedecia. Ela é e será uma presidenta frágil, sem uma base própria de poder. O poder para ser efetivo tem que ser conquistado. O poder recebido é raso, oco, simbólico.

Alguns elementos apontam nesta direção:

1) Dilma era totalmente desconhecida antes de ser levada por Lula para Brasília em 2003;

2) ela foi escolhida a dedo por Lula para ser candidata à presidência da República, isto é, ela não disputou esta escolha;

3) os escabrosos arranjos políticos para obtenção de apoio das oligarquias e partidos foram costurados por Lula e pelos articuladores subordinados a Lula;

4) o próprio esquema da campanha milionária à presidência estava fora do alcance de Dilma;

5) toda a força política real da presidência da República é mediada por figuras que Lula indicou para cargos-chave no executivo federal e que são, praticamente, seus serviçais;

6) Dilma está fora do comando das articulações com o congresso, as centrais sindicais, as oligarquias, os bancos, o agronegócio, o núcleo duro do grande capital e os partidos que se tornaram empresas por cotas limitadas (controlados por grupos dirigentes que são dublês de mercadores); e

7) Lula continuará controlando o caixa e os esquemas de financiamento do PT, que são fundamentais não somente para controlar o próprio PT como para o financiamento de campanhas eleitorais regadas a dinheiro.

Para Dilma sobrará o simbolismo do poder. Um dos riscos é que, no contexto de grave crise econômica, eclodam sérios problemas de governança e governabilidade. A fragilidade estrutural de Dilma será sempre travestida pela alegoria da eficiência burocrática e administrativa. A instituição presidência da República invertebrada, fragilizada e travestida de eficiência burocrática é parte da herança nefasta de Lula.

IHU On-Line – O senhor diz que ela será uma presidente sem base própria de poder. Mas o que explica, então, o apoio que recebeu na decisão do aumento do salário mínimo?

Reinaldo Gonçalves – Na história do Brasil podemos identificar presidentes relativamente frágeis e fortes levando em conta a base própria de poder, inclusive, características pessoais. Tomemos o passado recente: na lista dos presidentes relativamente fracos temos Sarney, Itamar e Dilma. Na lista dos presidentes relativamente fortes temos Collor (símbolo de modernização e carisma), Fernando Henrique (intelecto) e Lula (símbolo de mudanças).

Quanto à questão do salário mínimo não se esqueçam que foi uma negociação dura, inclusive, o governo usou o neopeleguismo da CUT contra as outras centrais sindicais e fez compensações. Quando se afirma que a presidente é relativamente fraca não significa que o governo seja fraco, principalmente quando se trata de lidar com grupos sociais e grupos de interesses que são facilmente cooptáveis, como é o caso do atual sindicalismo brasileiro. Não podemos esquecer, ainda, que o governo central no Brasil é hegemônico porque a sociedade civil é frágil, invertebrada. E, ademais, nunca antes na história o peleguismo foi tão marcante.

IHU On-Line – Mudanças no cenário internacional exigirão que tipo de política econômica do governo Dilma? Como vê a questão da exportação de commodities, por exemplo?

Reinaldo Gonçalves – O governo Dilma seguirá a mesma linha do governo Lula via arranjos com as oligarquias, os bancos, as grandes empreiteiras e o setor de agronegócio. Não houve qualquer transformação relevante nas relações, estruturas e processos políticos no Brasil nos anos Lula. O mesmo ocorrerá no governo Dilma. Os setores dominantes (com destaque para o das commodities) beneficiaram-se dos elevados e favoráveis financiamentos do Banco do Brasil e do BNDES. Simplesmente pelo valor simbólico, vale mencionar que, no fechamento das contas da campanha da Dilma, um dos maiores exportadores de soja do país contribuiu pessoalmente com um cheque de um milhão de reais. Quanto à elevação dos preços das commodities há uma saída simples: imposto de exportação. Além do efeito fiscal favorável, o imposto sobre a exportação de commodities aumenta a oferta para o mercado interno e, portanto, tem impacto favorável sobre a inflação.

Naturalmente, Dilma não pretende contrariar os interesses de um setor dominante que, além de financiar campanhas regadas com dinheiro, controla partidos políticos, governos estaduais e municipais, e tem grande base no Congresso Nacional (a chamada bancada ruralista). A reprimarização da economia brasileira e os arranjos com as oligarquias regionais expressam e reforçam estruturas, processos e relações políticas retrógradas.

IHU On-Line – Como o senhor vê os anúncios de investimentos no PAC, considerando o risco de inflação e a perspectiva de crescimento menor?

Reinaldo Gonçalves – O PAC tem sido, desde a sua criação em 2007, uma colcha de retalhos, ou seja, um conjunto frouxo de projetos. Na realidade, é uma lista de projetos, além de ser um balcão para realização de arranjos político-eleitorais. O resultado do PAC é pouco significativo. Vejamos: a taxa de investimento medida em preços correntes foi de 17% no governo FHC (1995-2002), 16% no primeiro mandato de Lula (2003-06) e 18% (no segundo mandato, ou seja, a partir do PAC). Portanto, a média da taxa de investimento do governo Lula (17%) é idêntica à do governo FHC. Ou seja, ambos tiveram desempenho medíocre em termos de taxa de investimento.

A melhora da taxa de investimento com o PAC é inexpressiva (um ponto de percentagem em relação à média do governo FHC). De fato, tirando Petrobrás, o PAC é praticamente inexpressivo. Certamente, se tirarmos os investimentos do pré-sal do cálculo, a taxa média de investimento do governo Lula é, além de medíocre, inferior à observada no governo FHC. O problema com o petróleo é que ele é a base da quarta revolução tecnológica que surgiu há exatamente um século. No século XXI, já estamos na sexta revolução tecnológica e o Brasil está focado nas prioridades do início do século passado.

IHU On-Line – Qual sua opinião a respeito da criação do grupo China?

Reinaldo Gonçalves – A criação de grupo de estudos dentro do Executivo é um indicador de que nada de relevante será feito. A relação bilateral China/Brasil já foi bem estudada e o principal resultado é que esta relação reproduz o modelo centro/periferia. Ou seja, a China é centro e o Brasil é periferia. A China apresenta-se como altamente competitiva e exportadora de bens e serviços intensivos em tecnologia, capital, mão-de-obra qualificada e alto valor agregado, enquanto o Brasil destaca-se como exportador de produtos primários. Ou seja, no século XXI o Brasil terá com a China o mesmo tipo de relação que ele tinha com o Reino Unido no século XIX e com os Estados Unidos no século XX. Com Lula, o Brasil consolida sua vocação para ser um vagão de terceira classe atrelado a locomotivas ou, pior ainda, como atualmente, a um vagão de primeira classe (China). É o Brasil andando para trás e comprometendo sua capacidade de desenvolvimento dinâmico e sustentável no longo prazo com investimentos focados em agronegócio, mineração e petróleo, e, portanto, desindustrialização e reprimarização.

IHU On-Line – É possível exigir do Brasil uma postura diferente do que a de exportador de commodities, considerando que isso que faz parte da raiz histórica do país? Como seria possível investir em setores mais dinâmicos?

Reinaldo Gonçalves – Este argumento tem sido usado desde o século XVI. O fato é que temos raízes apodrecidas. Desenvolvimento é transformação estrutural. Se os Estados Unidos tivessem se concentrado na exportação de commodities (fumo, algodão, etc.) após a independência, talvez, hoje eles fossem algo como o Brasil. Já no final do século XVIII os estadistas nos EUA definiram claramente a estratégia de industrialização. Era necessário que houvesse ruptura com o sul que era escravagista e primário-exportador.

Foi preciso uma guerra civil (1861-65) para romper a resistência de setores retrógrados, libertar 3,5 milhões de escravos e iniciar o salto dos EUA para o desenvolvimento econômico, social, político e institucional. Em pleno século XXI no Brasil, além das mazelas do atraso econômico, social, político e institucional, temos tido um nítido retrocesso intelectual, visto que os graves entraves ao desenvolvimento colocados por estruturas de produção dominadas pelo setor de commodities têm sido desprezados.

Nos anos 1930, o debate era mais inteligente. Como alguém pode, seriamente, pensar que o Brasil é o celeiro do mundo, que a China depende dos nossos produtos primários e que algumas commodities (por exempolo, etanol) não são commodities? Esse retrocesso intelectual também é parte da herança nefasta do governo Lula.

IHU On-Line – Muitas empresas chinesas são estatais e investem em outros países. O que representa, digamos assim, a intervenção direta de um Estado, no caso o Estado Chinês, em outro país?

Reinaldo Gonçalves – A China está usando no Brasil a mesma estratégia que ela usa em outros países da América do Sul, da África e da Ásia. A China trata o Brasil como trata Angola. O que a China quer é controlar fontes fornecedoras de matérias-primas e criar mercados para seus bens e serviços de alto valor agregado. Na realidade, a China está usando no século XXI a mesma estratégia das potências imperiais desde pelo menos os séculos XVI-XVII. E o Brasil entra nesta estratégia como mais um ator coadjuvante fornecedor de matérias-primas. Para se apropriar de tecnologia ou obter maior controle sobre a produção, a China compra empresas, monta alianças estratégicas ou força a criação de join-ventures (como é o caso da Embraer). Nada de perplexidade se daqui a alguns poucos anos a joint-venture da Embraer na China for comprada pelos chineses e passar a competir com a Embraer brasileira no mercado mundial. Portanto, temos aqui mais um exemplo da herança nefasta do governo Lula: no contexto da reprimarização, há internacionalização de empresas brasileiras, perda de controle sobre estas empresas, e perda de competitividade internacional do país.

IHU On-Line – Que avaliação faz do reajuste do salário mínimo?

Reinaldo Gonçalves – A fórmula de reajuste do salário mínimo é burra. O reajuste do salário mínimo no início do ano deve incorporar expectativas quanto à evolução macroeconômica do país (crescimento e inflação) no ano em curso. Não faz sentido atrelar o ajuste à taxa de crescimento de dois anos atrás e à inflação do ano anterior. Provavelmente usaram este método inapropriado pela sua simplicidade; só que neste caso a simplicidade só complica. Era estratégia dominante no governo Lula seguir a linha de menor resistência que, frequentemente, não é a mais apropriada. Há muitos exemplos dessa estratégia de linha de menor resistência: reprimarização, Bolsa Família, câmbio apreciado etc.

Provavelmente, Dilma manterá e, até mesmo, reforçará esta herança. Pobre Brasil! Durante muito tempo ficaremos sem transformações estruturais. Durante muito tempo os problemas estruturais, os vícios e as vulnerabilidades do país continuarão se agravando. E, durante muito tempo, os atuais grupos dirigentes e os seus intelectuais de algibeira (movidos por gratificações das consultorias e expectativas de ambos) argumentarão que os realistas são pessimistas e que o otimismo que eles professam não deriva da combinação de ignorância, venalidade, malandragem e pusilanimidade. Em síntese, não faltam exemplos da herança nefasta de Lula.


Fonte: IHU On-Line

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