Papel do Judiciário na garantia da segurança jurídica

Papel do Judiciário na garantia da segurança jurídica
Papel do Judiciário na garantia da segurança jurídica. Foto: Arquivo/OSollo

Recentemente, a imprensa noticiou uma decisão do Poder Judiciário da Santa Catarina que determina a demolição de um prédio de 36 andares com apartamentos de R$4,4 milhões. Trata-se de uma decisão ainda não definitiva, mas que chama a atenção e suscita muitas questões. De acordo com notícia, o fundamento para determinar a demolição se justificaria porque a construção teria ocupado área maior do que o planejado e porque teria havido supressão de mata nativa. A decisão também se baseia na alegada inconstitucionalidade da lei municipal que definiu as faixas de preservação permanente no local.

A primeira coisa que pensamos é: como poderia um prédio com esta magnitude ser construído com vícios tão graves a ponto de impor a sua demolição? Não houve processo de licenciamento e obtenção de alvará? Teria a administração pública sido leniente a ponto de permitir uma obra tão grande sem alvará? É evidente que não.

É verdade que, mesmo tendo aprovação do poder público, com a emissão de todos os atos autorizativos necessários, poderiam ainda assim estar configurados vícios anteriores ou posteriores à outorga da licença para construir. De fato, é possível que um ato administrativo seja nulo ou anulável diante da existência de vícios formais ou materiais. Portanto, sem entrar no mérito do caso concreto, podemos reconhecer a possibilidade de existência dos vícios apontados, ainda que tenha havido aprovação da obra pela autoridade competente.

É preciso, contudo, ponderar sobre a anulação e os efeitos de um ato administrativo viciado. Decerto que os atos inválidos geram consequências jurídicas, sendo muitas vezes protegidos contra o ímpeto anulatório em virtude da necessidade de observância aos princípios da segurança jurídica e da boa-fé.

Não é razoável que o Estado-juiz venha aplicar o direito sem ponderar os efeitos de sua decisão, principalmente quando afetadas pessoas que atuaram de boa-fé e não podem evidentemente arcar com os danos

A própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, após alteração realizada em 2018, (LINDB) dispõe nesse sentido: Art. 21, a decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. No parágrafo único, a decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.

Ora, ao Poder Judiciário também se aplica o disposto na norma de introdução. A regularização do vício deve ocorrer de forma proporcional, equânime, “não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos”. No caso em questão, a obra está pronta, foi realizada com autorização do poder público e dezenas de pessoas adquiriram os imóveis confiando no empreendedor (e na administração, que avaliou a regularidade do projeto aprovado).

Não é razoável que o Estado-juiz venha aplicar o direito sem ponderar os efeitos de sua decisão, principalmente quando afetadas pessoas que atuaram de boa-fé e não podem evidentemente arcar com os danos. Ainda que confirmados os vícios, a decisão demolitória não seria a única possível nesse caso. Existe uma série de medidas mitigatórias e compensatórias que podem ser aplicadas, como o enriquecimento da vegetação no local, a recuperação de áreas degradadas, regularização fundiária em áreas invadidas em APP, entre outras.

Uma decisão dessa natureza seria capaz de, a um só tempo, limitar os seus efeitos às partes do processo, propiciar a melhoria da qualidade ambiental, e preservar a esfera jurídica dos adquirentes de boa-fé. Na hipótese de o vício indicado gerar verdadeiro risco a sociedade, e sendo inevitável a demolição, seria preciso observar quais as responsabilidades de cada um. Não se pode admitir, em hipótese alguma, que quem atuou de boa-fé, seja comprador ou incorporador, sofra as consequências do erro da administração.

Nesta hipótese, sendo a demolição de interesse social, deveria a decisão também determinar que a administração indenize os danos sofridos pelo particular. Abra-se um parêntese para destacar que sendo a obra realizada em desacordo com o projeto aprovado, a obrigação relativa a todos os custos, seja para corrigir os vícios, mitigá-los ou indenizar o particular, será do dono da obra.

Nos termos em que foi prolatada, a decisão do Poder Judiciário de Santa Catarina representa um risco, pois gera um ambiente de total insegurança jurídica. Mesmo numa relação entre particulares, a aprovação de uma obra pelo poder público incute no investidor a confiança necessária para realização do negócio. Traduzindo, essa confiança de estar realizando negócios lícitos, de acordo com as normas, portanto com a proteção do Estado, tem um nome: segurança jurídica.

É a segurança jurídica que garante a estabilidade das relações, a previsibilidade de comportamentos, a certeza da licitude. Ninguém realiza investimentos se não tiver certeza da ausência de riscos jurídicos ou qualquer outro extrínseco ao próprio negócio. Vivemos um país cheio de oportunidades, mas com uma evidente retração de investimentos em virtude de vários fatores que efetivamente criam um ambiente de incerteza para o empreendedor, tais como: (a) tributação complexa; (b) marcos regulatórios indefinidos; (c) Judiciário lento; (d) alta burocracia; (e) corrupção.

Dito isto, diante de tantos desafios já existentes para a atividade empresarial, esperamos que no Brasil tenhamos, cada vez mais, um Poder Judiciário atuante e capaz de decidir sempre comprometido com o princípio da segurança jurídica.

Fabrício Castro é advogado, Conselheiro Federal da OAB (2021-2023), Ex-Presidente da OAB-BA (2019-2021) e sócio do Escritório Castro Oliveira Advogados

Fonte: Badevalor.com

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui