Por Pedro Ivo Rodrigues
I
Nestas areias me vem o deleite.De um espírito que está a
falar, de um homem que há muito está a viajar.Minhas palavras a
molharão como azeite.Meu grito não se pode calar e minha sede
só tu podes saciar.
Aqui nesta areia, minha vez chegou;as ondas falharam e o céu
se calou.
Vinte e sete impérios caíram, até as nuvens acolherem o gran-
de mouro ao qual as estrelas de sua boca saíram, de onde nunca
mais vão retornar.
II
Se me hás de matar aqui, que me rasgue o coração à espada ou
acerte-me o espírito com meus erros;mas nunca me acuses de não ter
sido bondoso em meus momentos de dualidade.
Se a alma do mar eu vi, que me trague a emoção alada ou me
deserte sob o Sol frito, ignorando meus berros.Ainda assim, verás que
fui generoso com a humanidade.
III
Aqui, agora e sempre finco a minha bandeira.Se 500 anos a mais
forem-me impostos a verdade nestas areias a peneirar, me resigno
agora, antes de meus algozes e vozes do passado me venham a cobrar.
Se tiver como trabalhos mais 40 muralhas a romper e dez países a
sangrar, devolvas agora a minha espada, meu escudo e meu fiel cor-
cel;porque o tempo está a correr e meus medos se põem a chorar;
mas não dissolvam de minha obra nada e nem meu grito mudo que
remeto ao céu.
Vejas aqui, o grande Khan da Pérsia, o grande vilão da Bretanha,
o profeta de ontem e poeta de hoje.
Que dez moedas ao areal está a pedir e a recusar os trinta di-
nheiros que fez a si mesmo trair.
IV
Não sei por que eu mesmo não fui ao encontro do meu Eu,
quando dele deveria ter feito uso.Nunca, nem mesmo quando o
céu beijou o chão, me disse Prometeu que de minha liberdade pas-
sei ao abuso.
Minha visão me traiu; minha boca me lançou às feras; meu ouvido
disse-me que devesse meter o pé na areia movediça.
Disso minha consciência fez alusão servil, do meu voo às trevas.
Meu maior sentido não poupou advertência maciça.
Por que então não calculei meus feitos com juízo? Simples, ora,
sou homem, sou falho, não fui fabricado para isso.Meu ontem hoje me
abriu um talho? Pensei então, como consertar agora e ver-me livre de
uma vez por todas disso.
Lobisomem? Fera à solta descontrolada e apta a devorar cordeiros
indefesos? Não.Quando encarei, vi que meus promotores somem, ante
minha visão aguçada que descobre e destroça aqueles que nas costas
põem-me pesos.
V
Onde? Como? Quando? Não sei e não quero saber.Perguntes pri-
meiro ao horizonte, ao início e ao propósito.Não é minha obrigação
saber.Cansei de relevar e punir.Roubaram-me a noção de moral; sim,
o mundo a roubou.
Algo diz que ainda verei e não esconderei mais do meu ser.Na
flor surgida no vespeiro, da escada ao monte, peguei tudo que de mim
é fictício e trancafiei no eterno depósito.
Se me chamarem os hipócritas, avises primeiro que não irei, não
responderei a não ser àquele que provar um dia meu pensamento co-
nhecer.
VI
Gemem e gemerão os velhos fantasmas.Sua vingança foi no rio
do esquecimento jogada.Guerreiro, ladrão, profeta e poeta, quando,
enfim, atingirei minha meta? Serei eu um lendário sábio perdido no
deserto, depois de peregrinar até Meca?Só o tempo e o mar respon-
derão;até lá as gaivotas me alimentarão, numa vida em que o homem
peca?
24/01/2001
*Do livro “Estilhaços de Sonhos Perdidos no Vazio da Existência”, publicado em junho de 2010.