Fé obtusa

“Não lhe bastam as consolações divinas, e as nossas palavras amáveis?” (Jó 15.11)

Esta pergunta é feita por Elifaz, que voltou a falar, perdendo uma excelente oportunidade de ficar calado – as vezes acontece conosco também. A partir de sua perspectiva de um mundo controlado, governado estritamente pela lei da semeadura e colheita, ele já havia diagnosticado toda a situação. Jó era culpado de algum pecado e precisa confessar. Feito isso, Deus se acalmaria e em lugar de ferir, como estava fazendo, o abençoaria. Se na geometria, um ângulo é obtuso porque é mais aberto que 90o, a obtusidade de uma pessoa está em sua visão estrita, fechada, irrealista. As vezes a religiosidade promove em nós um tipo de obtusidade para a vida. Simplesmente vemos a vida de uma maneira singularmente equivocada, mas que nos parece perfeitamente correta (e sagrada). Afinal, estamos colocando Deus no centro! É o que pensamos.

Mas, o que está no centro são as “leis espirituais irrefutáveis” sobre as quais há muito paramos de refletir. O que está no centro é uma certa visão da vida, de Deus e do outro, que recebemos em algum momento e se apoderou de nós, ao ponto de ignorarmos suas contradições. Em nome delas, achamos que honramos a Deus embora desconsideremos pessoas, que Cristo nos ensinou que valerem mais que o mundo inteiro. É uma obtusidade que não nos deixa perceber o lugar da vida em nossa fé, pois é uma fé que se desloca da vida, em lugar de enfrenta-la e ser aperfeiçoado. Elifaz não consegue imaginar um Deus que não se deixa “acionar” pela fé. Mas Jó está dizendo: “isso não é assim! Não é um pecado meu que justifica tudo isso e eu não sei o que é. O que sei é que tenho clamado por Deus, mas Ele está calado e isso está me matando!”

O deus de Elifaz é manipulável e segue regras que garantem benefícios e alimentam certezas. O Deus com quem Jó está lidando é livre e toma decisões que desagradam. Jó quer saber o que Ele tem em mente, mas Deus não quer dizer nada. Elifaz, mais preocupado em dizer coisas certas, em ter respostas, ignora a alma de Jó. É incapaz de colocar-se ao lado do amigo e acaba colocando-se contra. Elifaz abstrai-se da vida e pensa que isso é agir pela fé. É essa mesma lógica que o faz pensar que está sendo amável, quando não está. Jó está lidando com a vida, exatamente como ela é e não como gostaria que fosse. Há momentos em que crer não é abstrair-se, mas apropriar-se! O caminho de Jó não é confortável como as certezas de Elifaz, mas é o caminho de quem vive com fé e não de quem foge da vida, pela fé.

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