Barba Azul

Barba Azul

Existe uma estória que poucos conhecem hoje, minha mãe contava em Porto Seguro quando eu tinha sete anos, e relembrou posteriormente. Barba Azul, que era rico, morava num castelo que tinha cem quartos. O que não estava bem explicado eram seus múltiplos casamentos e suas esposas desaparecidas. Uma jovem se apaixonou por Barba Azul e se casou com ele. A festa foi linda. A vida, uma felicidade. Chegou, entretanto, um dia quando Barba Azul precisou viajar. Ao se despedir, ele tirou da cintura um molho de cem chaves.
“Eis as chaves do meu castelo”, ele disse para a esposa. “Você pode entrar em todos os quartos, menos um, o centésimo, o mais distante. Nesse quarto, não entre, pois será terrível se você fizer isso”, e partiu. A esposa se põe alegremente a visitar todos os quartos, todos maravilhosos, mais que suficiente para a sua felicidade. Mas, visitado o quarto de número 99, ficou ela com a chave proibida na mão.

É natural que se pense: “Se era proibida a entrada, Barba Azul não deveria ter deixado a chave”. Note que essa estória é uma variação sobre o mito da queda: Deus enche o jardim de árvores maravilhosas e diz, “Daquela árvore não comereis, porque no dia em que dela comerdes certamente morrereis”. Se a árvore não era para ser comida, por que a plantou? Se o quarto não podia ser aberto, por que deixou a chave? Quem faz essas perguntas ainda não entrou no mundo do faz de conta, pensa que se trata de “história”. Mas, as “estórias” acontecem na alma, não há formas de se guardarem as chaves. Ela abriu o quarto. E o que ela viu a horrorizou. Corpos mortos e sangue. O susto foi tão grande que ela deixou a chave cair no chão. A chave ficou suja de sangue. Tentou limpar a mancha. Inutilmente. A mancha resistiu a todos os sabões e lixas.

O castelo dos cem quartos é metáfora do corpo humano. Noventa e nove quartos abertos à visitação do público. Ali, com os visitantes estranhos, tudo são sorrisos e conversa cordial. Mas o último quarto é o quarto que odiamos, ali mora nossa parte monstruosa. Gostaríamos de nunca visitá-lo. Gostaríamos de perder a sua chave. O trágico é que, se nós mesmos não podemos abrir o nosso quarto dos horrores, é a pessoa amada, a mais íntima que possui a chave. Se aberta temos muitas vezes o feminicídio e outras sobras da natureza humana.

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