O direito nem sempre é bom ou igual. Na altura dos meus 91 anos, esperança para continuar combatendo e transpondo pandemias, racismos, fanatismos, pandemônios… Trata-se da consagrada Hermenêutica da Desigualdade: uma Introdução às Ciências Jurídicas e também Sociais (Del Rey, 2019, 222 p.) de Taurino Araújo, sobre a qual — em paráfrase a André Gide — tudo de melhor já foi dito, “mas como ninguém escuta” [por imprescindível dever e merecida cautela] “é preciso dizer de novo”, para que todo mundo saiba.
A Hermenêutica da Desigualdade remete a uma situação determinada recorrente em diversos sistemas de justiça, não apenas no sentido de identificá-la, mas de diminuí-la e desta forma superar a imprecisão e ambiguidade endêmicas do discurso ordinário comum. É através deste método, considerado por Pedro Lino de Carvalho Jr. “uma epistemologia brasileira”, que Taurino se desprende do contingenciamento histórico da lei dos livros (law in the books) para promover a efetividade da lei em ação, dentro das questões processuais concretas (law in action), v. Pablo Jiménez Serrano. É a desdiferenciação de sujeitos, independente das posses.
No passado, efeitos nefastos da desigualdade se concretizam com a crucificação de treze mil homens após a derrota de Espártaco, o escravo que teve a coragem indômita de enfrentar e abalar, com 40 mil homens, por quatro anos, o poderoso Império Romano, na via Ápia. Agora, um cidadão negro foi sufocado e assassinado pela polícia dos Estados Unidos, mas a Covid19, ao impor o isolamento social, arrosta que universalizar saneamento básico, saúde pública, auxílio e biossegurança é imperativo para que toda a humanidade continue a respirar.
Com a vista privilegiada de planejador educacional a que se referem Agenor Sampaio Neto e José Raymundo Simões Jr., Taurino trabalha estratégias conceituais ao incluir a desigualdade como conceito jurídico fundamental, quiçá antídoto cultural para amenizar a “bomba atômica” sempre protagonista de guerras e conflitos, com o esmagamento dos vencidos legitimado por useira, mas autofágica interpretação romântica da ordem jurídica que, paradoxalmente, teria de ser de todos, para continuar vivendo.
Segundo a OXFAM, apenas 82 pessoas detém riqueza igual à de outros 3,5 bilhões. Atemporais, portanto, Taurino Araújo e Castro Alves ao antever (e superar!) os nocivos efeitos da duplicação processual de privilégios dos vencedores e de menosprezos dos vencidos a que se refere o primeiro: “Os reis passam sem ver nada/Napoleão amordaça/ a boca da populaça”. Ao unir cabeça e coração, com Victor Hugo, a Hermenêutica da Desigualdade concilia “o sorriso de Voltaire e as lágrimas de Cristo” ao renovar as esperanças de seu “receptor também protagonista”.
Por Evandro Guerra
Biógrafo de Castro Alves, advogado, professor universitário, ex-procurador assessor do governador Waldir Pires – Casa Militar e Governadoria. Ex-vice-presidente do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB).