Diz a lenda popular que a origem da feijoada surgiu nas senzalas dos escravos, em virtude dos senhores das fazendas de café, das minas de ouro e dos engenhos de açúcar, darem aos escravos os “restos” das casas grandes, e que o cozimento desses “restos”, com feijão e água, teria originado a receita.
No entanto, a lenda não procede, seja na tradição culinária, ou nas pesquisas históricas. Carlos Augusto Ditadi, especialista em assuntos culturais, e historiador do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, afirma que essa lenda contemporânea, nasceu do folclore moderno, numa visão romanceada das relações sociais e culturais da escravidão no Brasil.
De acordo com Ditadi, o padrão alimentar do escravo não era diferente no Brasil do século XVIII, cuja base era a farinha de mandioca ou de milho feita com água, e outros complementos. A sociedade escravista do Brasil, no século XVIII, e parte do XIX, vivia na escassez e carência de alimentos básicos, em decorrência da monocultura, da dedicação exclusiva à mineração, e do regime de trabalho escravo, não sendo raros os óbitos por deficiência alimentar, não apenas dos escravos, mas dos próprios senhores.
O escravo custava caro, e constituía a base da economia da época, ele não podia ser simplesmente maltratado, e mal alimentado; ele tinha que comer três vezes ao dia, e geralmente almoçava às 8 horas da manhã, jantava à 1 hora da tarde e ceava por volta de 8 ou 9 horas da noite.
Nas referências históricas sobre o cardápio dos escravos, constava a presença inequívoca do angu de fubá de milho, ou de farinha de mandioca, além do feijão temperado com sal e gordura, servido muito ralo, com a ocasional aparição de algum pedaço de carne de vaca ou de porco.
Alguma laranja colhida do pé complementava o resto, evitava assim, o escorbuto (doença causada pela falta grave de vitamina C). Às vezes, no final de uma boa colheita de café, o capataz podia até dar um porco inteiro aos escravos, mas isso era raro, sendo assim, não existe nenhuma referência histórica reconhecida a respeito de uma humilde e pobre feijoada, criada no interior da maioria das tristes e famélicas senzalas.
Porém existe um recibo de compra pela Casa Imperial, de 30 de abril de 1889, em um açougue de Petrópolis, no qual se comprova que era consumido: carne verde, de vitela, carneiro, porco, linguiça, linguiça de sangue, fígado, rins, língua, miolos, fressura de boi e molhos de tripas. Ou seja, não eram só escravos que comiam esses ingredientes, que não eram “restos”, e sim “iguarias” da época.
Em 1817, Jean-Baptiste Debret já relata a regulamentação da profissão de tripeiro, no Rio de Janeiro, onde eram os vendedores ambulantes, que se abasteciam destas partes dos animais em matadouros de gado e porcos, e que os miolos iam para os hospitais, o fígado, o coração, e as tripas (de vaca, bois e porcos) eram utilizadas para fazer o angu, comumente vendido por escravas de ganho (escravas que realizavam tarefas remuneradas, e entregavam ao senhor, uma quota diária do pagamento recebido) ou os escravos libertos, nas praças e ruas da cidade.
Dessa prática surgiu o que no Rio é chamado de Angu à Baiana, principalmente porque levava em sua composição, o azeite de dendê (azeite de palma).
Portanto, o mais provável é que as origens da feijoada tenham surgido a partir das influências europeias. Provavelmente, sua criação tenha relação com o modo portugueses, das regiões da Estremadura, das Beiras e de Trás-os-Montes e Alto Douro, de misturar feijão de vários tipos – menos o feijão preto (que é de origem americana) – linguiças, orelhas e pé de porco.
Os cozidos sempre foram muito comuns na Europa, como o “Cassoulet” francês, que também leva feijão no seu preparo, assim como o “Cozido madrilenho” e a “Fabada Asturiana” na Espanha, e a “Casseruola” ou “casserola” milanesa, preparadas com grão-de-bico, na Itália. Aparentemente, todos estes pratos tiveram evolução semelhante à da feijoada, que foi incrementada com o passar do tempo, até se transformar no prato da atualidade.
Quem teve a ideia de juntar a laranja picada à feijoada? Acredite, não foram os brasileiros! Em 1929, quando os reis da Bélgica vieram em visita ao Rio de Janeiro, e se depararam com a tradicional feijoada carioca, inovaram, se servindo de laranja (que na verdade seria a sobremesa), como acompanhamento.
Fonte: Gazeta de Beirute