Vai namorar comigo, sim, vai dar a senha do celular também. Se reclamar, vai ter câmera no canto do quarto e um gravador de som dentro do carro. E o contrato é vitalício.
A ideia parece meio doentia, mas está em hits do sertanejo que discorrem sobre amores um tanto obsessivos. Ciúme exagerado, possessividade e até violência viraram temas recorrentes no gênero.
”Chegamos no coração das pessoas quando distorcemos um pouco a realidade, para mais ou menos. Esse jogo de colocar uma lupa no sentimento é o segredinho do autor.”
A explicação acima é de Bruno Caliman, um dos mais bem-sucedidos compositores do sertanejo. Ele ajudou a criar “Contrato”, uma das músicas de trabalho atuais de Jorge e Mateus.
O eu lírico é um homem que propõe à namorada um “contrato vitalício da paixão”, com “beijo todo dia de manhã” e “café na cama com chazinho de hortelã”. Mas ele avisa: “A rescisão é R$ 1 milhão / De onde cê vai tirar isso?”
A ideia surgiu na perspectiva feminina, conta o músico. “Pensamos nas exigências que as mulheres fariam se pudessem assinar um contrato com os parceiros”, diz. Além de Caliman, Lucas Santos e Rafael Torres assinam a canção, feita em meia hora.
O que diz a neurociência
“Do ponto de vista psicológico, as pessoas tendem a preferir músicas que validem ou expressem o que elas estão sentindo, e que gerem uma sensação de pertencimento, de identidade”, explica a pesquisadora Thenille Braun Janzen, pós-doutoranda em cognição musical e neurociências da música na Universidade de Toronto, no Canadá.
Isso não quer dizer que músicas com conteúdo nocivo podem afetar diretamente o comportamento de quem as escuta.
Há, porém, estudos que sugerem uma relação entre a exposição a canções violentas, independentemente do gênero musical, e o aumento do número de pensamentos e ideias agressivas. A pesquisadora alerta:
“É importante esclarecer que as pesquisas sugerem apenas uma correlação entre esses fatores, mas não que músicas com conteúdo violento causem comportamentos agressivos. Essa é uma diferença muito importante.”
‘Taca fogo na muié’
Insinuações de violência em nome do amor aparecem, por exemplo, em “Precipício”, lançada por João Bosco e Vinicius com participação de Wesley Safadão. A letra fala de alguém com sentimentos dúbios em relação ao parceiro. Segue trecho:
“Eu quero que sua casa pegue fogo / Mas eu vou correndo só pra te salvar / Eu quero que seu mundo caia do 18º andar (…) / Eu quero te jogar do precipício / Ao mesmo tempo, te salvar”
“É o amor possessivo, intenso mesmo. Quando [o eu lírico] está com raiva, quer matar a pessoa, entre aspas. Não matar de verdade. A briga passa e vem o amor, aí ele quer salvar”, explica Vinicius. “O amor e o ódio estão presentes na relação a todo momento.”
Em “Taca fogo na muié”, Munhoz e Mariano cantam: “Eu tô querendo, tô, tacar fogo nessa muié / Essa danada não me larga, não desgruda do meu pé / Eu tô querendo, tô, tacar fogo nessa bandida / Só não taco que, se eu taco, minha vida tá perdida”. Procurada para falar sobre a letra, a dupla não respondeu.
‘Distanciamento psicológico’
Pesquisas mostram que a música é capaz de ativar áreas do sistema nervoso ligadas à emoção, memórias de longo prazo, motivação, prazer e ao processamento de informações com significado social.
A ativação dessas áreas é maior quando a canção tem letra. Mas há outros fatores que podem determinar se a música influenciará o comportamento. O gosto musical é um deles.
Uma pesquisa publicada neste ano no jornal da Associação Americana de Psicologia comparou as experiências de fãs e não fãs em relação a músicas com temas considerados perturbadores.
Os resultados mostraram que fãs reportaram apenas emoções positivas ao ouvirem as músicas, como poder, alegria, tranquilidade e sensação de controle. As pessoas que não gostam do gênero disseram sentir medo, tensão, irritação, confusão.
“Uma das explicações dos pesquisadores é que, talvez, fãs consigam se distanciar psicologicamente do conteúdo das músicas”, explica Thenille.
Há algum limite?
Eduardo Pepato, produtor de “Vidinha de balada” (o fenômeno do “vai namorar comigo, sim”), vê um limite para a vertente sinistra do sertanejo:
“Tudo é válido no tema do amor, desde que não se fale em fazer mal a alguém ou a si mesmo.”
Já Caliman, o compositor de “Contrato”, considera “ultrapassada” a ideia de que a música pode refletir em comportamentos reais. Para ele, deixar-se levar pelo politicamente correto na hora de escrever é “o começo do fim do autor”.
Vinicius, da dupla com João Bosco, diz que a música “passa sempre uma mensagem positiva” e faz uma comparação comum nesse tipo de discussão: “Você não vai ver um filme de terror e sair cometendo atrocidades por aí”.
Por via das dúvidas, melhor seguir o conselho que ele mesmo dá em “Precipício”: em alguns corações não dá para confiar.
Fonte: G1