A venda de lotes do Incra destinados à reforma agrária é proibida. Mesmo assim, a equipe de reportagem do Fantástico descobriu várias área à venda.
Em um pedaço da Bahia, a água doce e o mar salgado quase se encontram em quilômetros de praia deserta e coqueiros. Mas, se você prefere o campo, existem boas opções: sítios com piscina e ampla área de lazer em Mato Grosso. O que essas terras têm em comum, além de serem ótimos lugares para curtir a vida? Tudo foi construído em áreas destinadas pelo governo a famílias pobres. São terrenos para assentamentos, pagos com dinheiro público.
Cumuruxatiba, no extremo sul da Bahia, é um distrito do município de Prado, que fica a 800 quilômetros de Salvador. Foi lá que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, criou um assentamento há mais de 20 anos.
O primeiro lugar que o repórter Eduardo Faustini visitou era um lote, onde vive o fotógrafo inglês Jamie Granger. Ele é filho de um velho astro de Hollywood, Stewart Granger.
A casa fica a poucos passos do mar. Jamie sabe que está em terras destinadas ao assentamento de famílias pobres. “Esse assentamento foi feito 25 anos atrás. Se você fizer uma verificação, a grande maioria das pessoas que foi assentada já vendeu. O Brasil precisa de lugares como esse para pessoas que trabalham duro o ano inteiro, em São Paulo, no Rio, para vir aqui jogar um golfe.”, diz.
Para receber um lote em um assentamento é preciso cumprir vários requisitos previstos em lei, entre eles ganhar até três salários mínimos. Estrangeiros não podem ser beneficiados pelo Incra. O inglês diz que comprou de um advogado brasileiro: “Ele falou que essa é uma área rural que era do Incra, mas que isso não existe mais”.
A venda de lotes do Incra é proibida. Mesmo assim, em apenas três dias na cidade, a equipe de reportagem do Fantástico descobriu vários à venda.
O trabalhador rural Olavo estava disposto a negociar.
Fantástico: São 20 hectares?
Olavo: 21 hectares. Eu estava pedindo, há um tempo, 350 contos. Tinha até vendido. Quase vendido. Não vendeu porque…
Fantástico: R$ 350 mil?
Olavo: Sim.
Olavo revela que para fechar negócio é preciso dar dinheiro para o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Prado: “Pelo menos eu vendendo, eu não deixo de dar ao sindicato alguma coisa”.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, José Augusto, confirma que o lote de Olavo é mesmo do Incra: “Aqui tem um grande problema. Essas terras são da reforma. É terra de reforma agrária”.
Sobre a falta de fiscalização, José Augusto diz que conta com a lerdeza dos órgãos oficiais: “É aquele negócio: para o Incra tirar alguém de uma terra, leva tempo”.
A equipe do Fantástico tentou localizar alguém no sítio, que segundo documento do Incra, é posse da ex-modelo internacional Marina Schiano.
O cadeado que tranca o portão de outro sítio é para garantir que ninguém vai mexer em nada que pertence ao empresário Carlos Alberto Pereira dos Santos, conhecido como Carlinhos de Vitória. O empresário tem até acesso à praia particular. “Ele só vem aí nos feriados dele. Ele não fica aí. Quem fica aí, é o caseiro dele”, diz um morador.
O Fantástico tentou localizar Carlos Alberto por telefone, mas ele não respondeu aos recados.
O repórter Eduardo Faustini chegou a um local, onde o mangue quase encontra o mar e tem paisagem deslumbrante.
Fantástico: Quem é o proprietário?
Morador: Lucas Lessa.
Fantástico: Ele não fica aqui?
Morador: Vem, fica aqui um pouco e volta para Porto Seguro.
Lucas Lessa é advogado e também não foi encontrado.
“Aqui que chega o empresário, cheio de dinheiro, em uma região toda loteada pelo Incra, com muito dinheiro, R$ 100 mil, R$ 500 mil, R$ 1 milhão, compra o pobre assentado e o desloca para periferia do projeto. Toda essa região está sendo objeto da cobiça e da compra com a conivência estranha do Incra. Porque o Incra sabe que esse pessoal não tem perfil de reforma agrária e permite, porque está havendo alguém levando vantagem com isso”, afirma.
“Nós temos grandes empresários aí dentro com lotes, até formação de fazenda, 12 lotes contínuos. Tudo com nome de testas de ferro, irmãos, todos eles cadastrados”, explica o Ézio Nonato, da Associação Comunitária.
A travalhadora Teresa Camilo dos Santos aguarda por um lote há muito tempo. “O Incra me cadastrou. Eu estou há 22 anos aqui”, conta.
Arnoud Quaresma de Freitas é um dos poucos assentados dentro da lei encontrados na região. “Planto amendoim, milho, melancia, mandioca, laranja, coco, doze vacas de leite. Sobrevivo disso aqui. Ainda vivo feliz de estar nesse pedacinho de terra”, diz.
De acordo com o Incra, foram feitas vistorias nos lotes de Cumuruxatiba em função das denúncias. “Nós vamos à última instância que é a ação judicial de retomada das terras, como é caso da Bahia, com mais de 30 ações de reintegração de posses desses lotes ocupados irregularmente e imoralmente”, afirma Celso Lisboa de Lacerda, presidente do Incra.
Uma das cidades mais ricas de Mato Grosso, o município de Sorriso fica a 180 quilômetros de Cuiabá e tem o melhor índice de desenvolvimento humano do estado. A cidade cresce e, junto com a riqueza, se multiplicam os sítios destinados ao lazer.
Seria tudo muito bom e estaria tudo muito bem se não fossem terras de assentamento. Assim como acontece na Bahia, na região há muita gente interessada em vender os lotes.
A certeza da impunidade é tão grande que gera situações peculiares como uma placa de “vende-se” em um terreno. O lote com a placa está no nome de Bernardete Bem Manchio. Ela tem uma boa casa na cidade e quer ganhar dinheiro com a terra, que não pode ser vendida. Quanto você ta pedindo? “Uns130 mil”.
A equipe encontrou outro assentado interessado em passar o lote adiante. Seu Sena pede R$ 140 mil pela área e diz que está barato. “Eu quero dez conto o hectare. Sabe por que eu quero vender? Porque eu quero aproveitar. Sou viúvo e quero mexer com outras coisas”, diz.
Sena revela que tem esquema com alguém dentro do Incra para acobertar a venda. Um homem com apelido de Brito. Brito é Lionor da Silva Santos, subchefe do Incra regional. Não foi possível encontrá-lo pessoalmente, mas por telefone, quando o repórter disse que queria comprar o lote do Sena, Brito respondeu: “Eu vou informar aqui no escritório. Por telefone não vou informar nada, não”.
“Chegar nele e falar: ‘Brito, vou vender meu lote e passa para o nome dessa pessoa aí. Dá uns troquinhos para ele e acabou. Falei, tu vai situar no meu nome? Tem um chorinho, falei quanto que é? Dois mil”.
Sena sabe que está fazendo a coisa errada. “Quem pega terra do Incra não pode vender. Vendem porque são teimosos. Aqui já venderam 50 lotes”, diz.
No dia seguinte, Sena revela que já é a segunda vez que faz este tipo de venda. “Esse é o segundo lote que eu tenho. Eu tinha no Ipiranga. Vendi. Não tive problema nenhum. Só que eu peguei aqui no nome da minha filha porque eu não podia pegar mais. No Incra, você pega uma vez, se você vendeu, você não pega mais”.
Gabriel é filho do dono de uma madeireira. O nome dele está na placa de um lote de assentamento. Ele fala sobre a compra da área e menciona Brito. “Até falei com ele: ‘Brito, o que nós temos que fazer mais?’ Ele falou: ‘Os documento estão aqui, tem que só esperar os rapazes irem aí’. Fui direto lá”.
“Aqui tem a declaração de desistência do Seu Darci”, diz Gabriel. O documento que ele entrega é uma carta de desistência. Nele o assentado diz que não tem mais condições de trabalhar na terra. A área deveria ser destinada a outro agricultor que precisasse trabalhar. Mas acaba indo para o comprador.
José Carlos Suzin, o Carlão, é presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Ele conta que o segredo para enganar o Incra é colocar um laranja morando na terra para passar pela vistoria. “Se seu funcionário tem perfil agrícola, não tem bens, não é funcionário do estado ou não tem terra no nome, o que pode inviabilizar são esses fatores”, lembra.
Veja o argumento que o presidente do sindicato usa para justificar o comércio ilegal de lotes. “O Incra tem mania de botar família de pobre em cima de terra, pobre em cima de terra não produz nada”, argumenta o presidente do sindicato para justificar o comércio ilegal de lotes.
Por denunciar as falcatruas na região, Dinéia de Souza Costa, presidente da Associação Pós-Terra, sofreu ameaças e teve a casa incendiada. Perdeu tudo, menos a vontade de falar. “A intenção é que eu desista do assentamento porque eu sou calo no pé de muitos aqui, não participo da venda do lote, sou contra a venda do lote e a favor do Incra retomar o lote de quem vendeu e dar para quem está na lista de espera”.
A família Miller está na lista de espera. Onde moram, a luz não chegou e as crianças só estudam enquanto dura a vela. Os lotes usados como sítio de lazer são uma afronta para quem espera.
“O que pode, pode tudo, tem que ficar assim, sem água gelada, sem energia, pegar água dos vizinhos. Tem muitos que só têm sítio para ter área de lazer, futebol, piscina. E não tem um pé de mandioca plantada, só para festejar mesmo”, conta Gelci Miller, trabalhadora rural.
“Me sinto triste, eu vejo que minha mãe quer, luta e não pode. Quero é que minha mãe ganhasse isso daqui. Meu pai… É ruim morar sabendo que pode ser despejado a qualquer hora. Com fé em deus nós vamos ganhar…”, lamenta Patricia Miller, 15 anos.
A vergonha que a menina sente quando correm as lágrimas falta a quem explora o que não é seu. Em um telefonema, um dos posseiros, chamado de Neto Baião, pede R$ 500 mil por um lote.
Na terra que ele quer vender, só o vive o caseiro Silas, um homem simples que sabe das coisas.
“Brasil é o país de todos, rapaz. Brasil é o país de todos. Brasil, quem tem esse tem tudo na mão. Agora o cara que anda arrastando a barriga no chão, com a mão calejada, não tem vez, rapaz”.
Fonte: Fantástico