Em um período de isolamento social como o que o mundo vive por conta da pandemia de covid-19, as questões de saúde mental se intensificam. Como realizar a escuta e o atendimento psicológico em um momento no qual compartilhar um ambiente é tão perigoso? A experiência do Plantão Psicológico Online, conduzida em parceria por servidores e estudantes da UFSB, UFBA, UFABC e Instituto Federal São Paulo, está explorando a viabilidade do atendimento mediado pela rede mundial de computadores. A iniciativa contou com o apoio da antiga Pró-Reitoria de Sustentabilidade e Integração Social (Prosis) e agora, recebe verba de fomento via projeto apoiado pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proex) da UFSB. Há, ainda, a expectativa de parceria com a Universidade Estadual de Santa Cruz, a ser confirmada em breve.
No que cabe à UFSB, o professor Caio Rudá de Oliveira e a professora Gabriela Andrade da Silva coordenam o trabalho que contempla ensino, pesquisa e extensão desde o Campus Paulo Freire, em Teixeira de Freitas. Gabriela explica que o Plantão Psicológico é um atendimento emergencial. “O atendimento é feito quando surge a queixa do cliente, sem necessidade de fila de espera. Nós oferecemos uma sessão sem limite de tempo de duração, em que trabalharemos essa queixa a partir da escuta, do acolhimento e da busca conjunta de estratégias de enfrentamento, a partir dos recursos do próprio indivíduo e de sua rede (familiares, amigos, serviços disponíveis em seu território)”. Em certos casos, uma consulta de retorno é agendada, e se for percebida a necessidade de atendimento continuado, a equipe encaminha o paciente para outros serviços. “Comparando o Plantão Psicológico com um serviço de saúde física, nós seríamos o “pronto socorro”, a “UPA”: um serviço que objetiva atender urgências, mas não pretende fazer um acompanhamento contínuo, que seria o papel da psicoterapia”, afirma a psicóloga e pesquisadora.
Como acessar o Plantão Psicológico Online?
Para ter acesso ao plantão, é preciso preencher um formulário de inscrição até o final e aguardar o contato com a equipe por e-mail ou telefone. O link para o formulário de inscrição é: https://plantao- |
Aprendizado e serviço
O professor Caio conta que a ideia do plantão surgiu em 2018, quando ele realizou um projeto piloto no qual destinou as tardes das quartas-feiras para atender estudantes durante as últimas semanas do quadrimestre, de acordo com a demanda espontânea. “Nessas tardes eu me colocava disponível numa das salas de tutoria do Centro de Formação em Ciências da Saúde, aguardando a chegada dos estudantes, aberto para atender a qualquer tipo de demanda. Ao final do período, fechei o ‘ensaio’ do plantão com uns poucos atendimentos. Apesar da baixa procura, foi uma excelente oportunidade de perceber melhor o cenário e aprimorar a proposta de implantação definitiva de um serviço de atendimento psicológico na UFSB”, conta o docente.
A transferência por remoção da professora Gabriela do campus em Itabuna para o de Teixeira de Freitas contribuiu para o estabelecimento do serviço de plantão psicológico em definitivo, com a ligação ao um componente curricular de estágio básico do curso de Psicologia e a abertura para atendimento da comunidade em geral. “O plantão vinha se instalando com sucesso, tendo uma procura significativa, até que fomos forçados a suspender as atividades em função da pandemia de Covid-19”, explica o professor Caio.
A alternativa do atendimento online foi uma resposta a essa situação, como forma de defender a saúde física sem interromper a atenção para com a saúde mental. A professora Gabriela afirma que a equipe do Plantão Psicológico passou a registrar muitos pedidos de atendimentos por conta dos efeitos do isolamento. No início da situação emergencial no Brasil, o Conselho Federal de Psicologia vedava atendimentos emergenciais de forma remota, impedindo legalmente essa modalidade. Esse entendimento mudou no final de março, com o Conselho suspendendo a vedação por conta da pandemia do novo coronavírus. “Então, o Plantão Psicológico em modalidade não presencial passou a ser possível, mas é algo completamente inovador. Aí me veio a ideia de criar um projeto integrando Ensino, Pesquisa e Extensão: nós oferecemos o serviço à comunidade, pesquisamos a sua efetividade e ensinamos nossos estudantes por meio de atividade de estágio e de extensão”, detalha a professora Gabriela.
O início dos atendimentos remotos foi em meados de abril, com uma equipe de sete psicólogos da UFSB, da UFABC e do IFSP, segundo o professor Caio. Algumas semanas depois, foi estabelecida uma parceria com professores de psicologia do Instituto Multidisciplinar em Saúde da Universidade Federal da Bahia (IMS/UFBA), em Vitória da Conquista, que também haviam implantado um serviço de plantão psicológico online. A cooperação inicialmente era no âmbito da pesquisa, uma vez que a professora Gabriela está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde do IMS/UFBA, mas se ampliou para a parte operacional do plantão, com compartilhamento da parte operacional de inscrições, atendimentos e formulários de pesquisa. “Na prática, juntamos os serviços e agora passamos a trabalhar em conjunto”, define o professor Caio.
Ao todo, 59 pessoas atuam no Plantão. A professora Gabriela explica que 33 psicólogos atuam na equipe clínica, responsável pelos atendimentos e pela supervisão do trabalho. “Na equipe de pesquisa, nós temos 11 pessoas, sendo sete docentes e três técnicos-administrativos das quatro instituições envolvidas e uma estudante de iniciação científica da UFSB. Alguns pesquisadores compõem também a equipe clínica. Temos um estudante do BI Saúde da UFSB que está atuando voluntariamente no projeto de extensão, nos ajudando a construir material de divulgação (vídeos, por exemplo)”, detalha.
Há também 14 estudantes de graduação que atuam como ouvintes e registram dados para as pesquisas por vir. “Eles ainda não estão atendendo, porque estão em estágio básico, e consideramos que o atendimento online demanda mais do profissional que o atendimento presencial; assim, decidimos não colocá-los “na linha de frente” a princípio”, conta a professora, dizendo que a vedação anterior de atendimento e estágio na modalidade remota, conforme entendia o Conselho Federal de Psicologia, caiu por terra com o impacto da pandemia do coronavírus. “Ainda há discussões no Conselho Federal de Psicologia, que tem se mostrado contrário a essa modalidade de estágio, embora tenham aberto o assunto para discussão com a categoria. Nós somos da opinião de que uma vez que o atendimento psicológico em formato remoto é permitido, precisamos formar nossos estudantes para essa prática. Temos participado de discussões junto ao sistema de conselhos e mantemos diálogo com a Progeac para viabilizar essa certificação”, afirma Gabriela.
Os desafios dos dois lados do atendimento online
A necessidade de evitar a ampliação do contágio praticamente rompe com a prática tradicional do trabalho dos psicólogos, que envolve a interação presencial, “ao vivo e em cores”. Transpor a prática profissional corrente para a mediação por computador tem o benefício do preparo do psicólogo para o trabalho e o desafio de usar a videoconferência para isso. “Nossa maior dificuldade talvez tenha sido a adaptação do atendimento presencial para o atendimento remoto, por meio de videoconferência. Essa ainda é uma ferramenta pouco explorada pelos psicólogos, e na realidade o fortalecimento dessa modalidade de atendimento no Brasil é totalmente contingencial, por conta da pandemia da Covid-19, que nos obrigou a reformular as práticas para dar conta dos desafios promovidos pelo isolamento social”, observa o professor Caio. Ele entende que o serviço online ainda está em uma fase inicial de preparação pelo caráter ao mesmo tempo inovador e emergencial. Essa mudança exigiu da equipe o desenvolvimento de um protocolo de atuação que dê conta das principais questões do atendimento virtual.
Ao mesmo tempo em que ajustou a forma de prestar esse serviço, a equipe também reúne dados de modo a aprimorar a compreensão sobre como esse contexto terapêutico mediado por computador, em especial no modelo de plantão, em que qualquer tipo de demanda pode surgir a qualquer momento. É uma forma de sistematizar a experiência e gerar conhecimento que sirva para a melhoria do trabalho. “Por isso mesmo estamos conduzindo a pesquisa sobre a efetividade dos atendimentos, focados também na exploração desse fenômeno de atendimento online. Em suma, buscamos identificar e analisar as vantagens e limitações desse tipo de prática, bem como os desafios técnicos e éticos que se apresentam para o psicólogo”, sintetiza o professor Caio.
A prestação do atendimento psicológico online é um desafio que se impõe diante dos casos que se manifestam do outro lado da tela. A abrupta e profunda mudança causada pela pandemia de covid-19 causou efeitos em todos os aspectos da vida humana. Caio e Gabriela destacam que, devido ao procedimento do sigilo profissional e da ética em pesquisa, dados pessoais e confidenciais dos usuários do serviço são protegidos. Com esse cuidado, a equipe submeteu artigos com os primeiros dados do plantão a um evento internacional da área. Um deles trata da gama de questões apresentadas pelos usuários à equipe do plantão, explica a professora Gabriela. Conforme ela, a queixa mais comum é a ansiedade, pois “temos uma situação em que perdemos o controle das questões de nossa vida, e não temos sequer uma estimativa da data em que o cotidiano vai ‘voltar ao normal’”. A equipe também registrou demandas de conflitos familiares por conta da quarentena. “Muitas pessoas tiveram que voltar para casa de suas famílias, e retomaram então conflitos antigos. Em especial para mulheres e comunidade LGBT+, isso pode significar voltar para um lugar em que situações de machismo e de violência estão presentes”, analisa Gabriela.
O trabalho remoto é outro fator presente nas manifestações dos usuários: “ao trabalhar de casa, nós fundimos os tempos e espaços doméstico e laboral, e passamos ao “trabalho sem fim”, isto é: há mensagens chegando a qualquer hora do dia e da noite, retirando o tempo de “se desligar” das questões profissionais”, avalia a professora Gabriela. A vida em família, com os afastamentos para trabalhar e estudar, agora faz com que pais e mães tenham de cuidar continuamente de crianças e adolescentes, assumindo as necessidades de ajudar os filhos com a realidade da educação à distância e com as emoções.
Os problemas financeiros, principalmente para pessoas que perderam seus empregos ou que trabalham com comércio e serviços que não podem ser prestados de forma remota também integram os registros dos usuários, relata a professora. A categoria dos profissionais de saúde, muito exposta ao risco, tem também os seus motivos de sofrimento emocional. “Se queixam do medo de se infectar e das más condições de trabalho, com insuficiência de EPIs, por exemplo, além de terem se afastado mais que as outras pessoas de suas famílias, aumentando a sensação de solidão”, detalha a professora Gabriela.
As questões relacionadas com o luto, que se agravam no caso de Covid-19, também emergiram na análise dos atendimentos, uma vez que o registro da causa mortis pelo novo coronavírus impede a realização dos rituais de sepultamento que ajudam a elaborar essa perda. “Todas essas questões são agravadas por uma crise política em nosso país, que também tem provocado muito sofrimento nas pessoas que nos procuram. A situação coletiva é de grave insegurança política, econômica e social, e isso se faz sentir de forma individual”, completa a pesquisadora.