Onde os velhos não tem vez

Onde os velhos não tem vez

Sentada na poltrona da sala de estar, seu lugar preferido para ler. Minha tia de 90 anos, irmã de meu pai, esperava por meu primo, que estava atrasado. A poltrona, uma das peças de um par, embora já fizesse muito tempo que sua companheira havia ido para a lixeira, tinha sido deslocada, para ficar encostada na janela da sala, no bairro de Brotas, que ocupava a frente da casa, no térreo, com vista para a rua. É o lugar que pega sol na maior parte da manhã e por um bom período da tarde também; o lugar de onde minha tia, podia ver o mundo passar, e o mundo, por sua vez, podia observá-la, satisfazendo as expectativas dele em relação a uma pessoa idosa: sentada numa poltrona, sozinha num cômodo, refletindo sobre o passado, sobre as glórias alcançadas, as oportunidades perdidas, sobre como as coisas costumavam ser.

Sobre pessoas que já haviam morrido. Parece muito e pouco tempo desde quando afundou na escuridão, com a morte do marido e de um de seus três filhos. Ela teve coragem rara na morte do filho, um evento que não é natural, lembrou-se do momento em que ocorreu, graças a ansiedade que a atingiu, naquele instante no hospital. Um fluxo contínuo de dor, uma grande onda que era preciso saber pular para não se afogar. Tinha a impressão de que os sulcos de irritação na testa estava cada vez mais fundos com o passar dos anos, lembrou da manhã cinzenta do enterro. Cruzes, lápides. Agora o filho está ali morto, no mesmo cemitério que o pai, pensou sentada ali sozinha na poltrona olhando para a rua. O tempo, esse químico invisível, que dissolve, compõe, extrai e transforma todas as substâncias da memória, não tirou ainda está lembrança. Depois de perder o marido e o filho ela se deu conta de que não conseguia falar muito sobre perdas: tudo que as pessoas diziam parecia superficial e tolo. Ao perdê-los, sua compreensão do sofrimento mudou. O que havia aprendido sobre Deus tinha ficado mais vivido e pessoal agora perto do fim. Sua fé não fora abalada, mas seu temperando havia mudado, ao que parecia, para sempre. Era como se um quarto aquecido tivesse esfriado de repente, embora ainda fosse o mesmo quarto. Levou muito tempo até reunir a coragem para reviver estas lembranças e experiências de vida, hoje tem um bom pecúlio deixado pelo marido, alguns livros e a solidão.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui