Por Ramiro Guedes
Quando Millôr Fernandes e Flávio Rangel escreveram o clássico “Liberdade, Liberdade”, eles o fizeram para protestar contra o autoritarismo imposto pela quartelada de 1964, mas, muito mais que isso, o fizeram para mostrar aos brasileiros que estavam sendo roubados pela força do principal bem que uma nação possa ter: a liberdade. Para fazer isso, para esse protesto, os autores precisavam ter o que Camões recomendava a si mesmo nos Lusíadas: engenho e arte. A peça foi montada em 1965, em plena ditadura militar, início dela, aliás. No princípio, todos os golpes são vaidosos e os autores da quartelada a chamavam de “revolução que salvou o Brasil dos comunistas”. Partindo da falsa premissa de salvação do país, os militares se sentiram deuses do Olimpo, que não podiam ser contestados. Como deuses, tinham, ou pensavam que tinham poder total sobre a nação. Podiam prender, torturar, cassar e assim o fizeram. Com “Liberdade, Liberdade”, assim os donos da nação praticaram: poucos meses depois da estreia, a peça foi suspensa. Não obstante isso, já se tornara um dos maiores sucessos de público da época. Virou referência desse tipo de teatro de protesto, um pouco teatro do absurdo, onde a arte teatral faz de sua essência um caminho para que o homem moderno possa mostrar sua ojeriza à dominação e à ditadura. A montagem original de “Liberdade, Liberdade” foi dirigida por Flávio Rangel e interpretada por Paulo Autran, Oduvaldo Vianna Filho, Nara Leão e Tereza Rachel. A característica da peça “foi lançar no Brasil um espetáculo teatral baseado na seleção de textos históricos importantes.” (Contracapa da edição em brochura da editora Plus).
Nesses dias negros para a história teixeirense, em que a liberdade foi ultrajada com o assassinato do jornalista Geo Lopes, “Liberdade, Liberdade” merece ser lembrada por algumas de suas citações. Seria Geo Lopes falando? Vamos a algumas falas:
“Artigo 141 da Constituição Brasileira: é livre a manifestação de pensamento”.
“Eu queria morrer de outra maneira; sem fadiga, sem dor, assim como cai uma estrela, como expira um som, matar-me com beijos dos meus próprios lábios, morrer como morre um raio de luz em águas límpidas. OH, poder não morrer…” (Lacroix, falando com Danton, pouco antes de ser guilhotinado na Revolução Francesa).
“Quando um dia a história abrir nossas sepulturas, o despotismo ficará sufocado com o mau cheiro de nossos cadáveres…” (Danton, pouco antes de ser guilhotinado pela Revolução).
“Todo escravo que matar o seu senhor, seja em que circunstância for, mata em legítima defesa.” (Luiz Gama, iniciando a batalha literária pela libertação dos escravos).
“E existe um povo que a bandeira empresta
Pra cobrir tanta infâmia e cobardia
E deixa-a transformar-se nessa festa
Qual manto impuro de bacante fria!” (Castro Alves)
“Liberdade, Liberdade, abre as asas sobre nós
das lutas, na tempestade,
dá que ouçamos tua voz…” (Trecho do Hino da Proclamação da República, de Leopoldo Miguez e Osório Duque Estrada).
“Companheiros! Estamos cercados! Não vamos deixar o inimigo escapar!” (General republicano, em luta contra as forças fascistas de Franco, na Espanha).
“Companheiros, nos mataram o melhor homem de Espanha…” (poema falando sobre a morte atroz do poeta Gacia Lorca, na guerra civil espanhola, ele também assassinado a tiros).
“Una canción,
una canción,
Llena de calles
De una ciudad…” (Canção de guerra de alguns grupos comunistas espanhóis na guerra civil contra o fascismo de Franco).
“Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda…” (Cecília Meireles, no Romanceiro da Inconfidência).
“Em meus cadernos de escola
Nessa carteira, nas árvores,
Nas areias e na neve, escrevo teu nome,
Liberdade…” (Paul Eluard, poeta francês, em seu poema Liberté).
Essas são algumas frases das centenas que “Liberdade, Liberdade” traz e que nos fala da indignação quando tentam matar essa mesma Liberdade. Foi esse o caso do assassinato do jovem (44 anos) jornalista Geo Lopes. Pediríamos aos autores da peça para acrescentar apenas uma frase, essa bem nossa e bem conhecida:
“Onde será que está aquele moço Fulano de Tal, pai, namorado, marido, irmão que não voltou mais…” (Gonzaguinha).