O mito da lusofonia em debate em poema homônimo de Edson Cruz

[Por Almir Zarfeg]

O mito da lusofonia em debate em poema homônimo de Edson Cruz
Almir Zarfeg exibindo exemplar do livro de poemas “Negrura”. Fotos: Divulgação

Ainda sob o efeito das referências à passagem do Dia de Camões e de Portugal, comemorado nesse 10 de junho, passo a comentar o belo e instigante poema “Lusofonia” – que integra o livro “Negrura” (Kotter Editorial, 2022) e que me atraiu à primeira leitura. (Lembrando que, em 5 de maio, tivemos o Dia da Lusofonia ou Dia Mundial da Língua Portuguesa.)

O poema “Lusofonia”, assim como os demais 26 textos que compõem a mais recente obra de Edson Cruz, se inscreve no contexto literocultural marcado pela negritude ou negrura – como preferiu o autor –, para botar em debate a condição do negro no Brasil e no mundo, pelo viés linguístico-ideológico, vitimado pelo racismo e outros tantos “ismos”.

O poema se nos apresenta dentro da proposta estético-expressiva da obra em questão: moldado em versos livres, quase sempre sintéticos, em estrofes curtas ou longas, para que o leitor possa fruí-lo verbivocovisualmente.

O mito da lusofonia em debate em poema homônimo de Edson Cruz
Luís Vaz de Camões é o expoente maior da lusofonia

Em “Lusofonia” – por razões óbvias – as palavras são trabalhadas e/ou exploradas de maneira notável. Até porque estamos diante de uma palavra poderosa em todos os sentidos, sobretudo ideológico, resultante da justaposição (luso + fonia), latim e grego, responsáveis pela formação do nosso léxico.

Pois bem, numa única estrofe, versos curtos (com a ocorrência univocabular), mas poderosos, nos conduzem pelos séculos da língua portuguesa e, também, pela história dos lusitanos e seu Império Português.

A fim de que possamos apreciar cada segmento textual, os versos serão apresentados ipsis litteris, e na sua totalidade, para a nossa degustação e – por que não? – espanto e reflexão.

“ainda há muitos corpos / insepultos / muitas vozes com gargantas / decepadas”

Assim começa o poema, com uma imagem muito forte, em que o embate colonizador/colonizado fica patente. E o uso da metonímia “muitas vozes”, empregada no lugar de povo ou população, revela o talento do autor ao conduzir o tema e, também, ao lançar mão do recurso do encadeamento (enjambement), para estabelecer ligação sintática e semântica entre verso anterior e seguinte.

“tantas marcas tatuadas / ainda em brasa / quantas frátrias fraturadas / em nome da pátria”

Se não bastasse o critério na escolha das palavras para lembrar uma história de dor e, dessa maneira, articular texto com contexto (conteúdo/sentido/significado), o poeta ainda se mostra cuidadoso com os aspectos sonoros (aliteração) e visuais do poema (forma/expressão/significante).

No fundo e na forma, portanto, a intenção é impactar o leitor, tocando-lhe o senso crítico e capturando-lhe o olhar pela recepção estética. E aqui o tripé (texto-contexto-discurso) se completa.

Note-se que, para valorizar a coincidência sonora e conseguir o efeito da eufonia, o poeta se permite mudar uma sílaba tônica de posição, como verificado com o vocábulo “fratria” (oxítono), que virou “frátria” (paroxítono), para rimar com “pátria”, do verso seguinte. Em resumo, o poeta transpôs o acento tônico para a sílaba anterior (sístole), promovendo a tão desejada combinação sonora.

“tantas línguas encobertas / tantos ataques e sotaques / e sempre a mesma dicção / de aporia / a camuflar / soterrar / degenerar / com seu perfume de flor vulgar / a última flor do Lácio / a nos embriagar / à afasia / com seus acentos / seus desacordos ortográficos / e sua oceânica pretensão / de lusofonia”

Agora, vamos por partes, porque o desabafo do poeta é solene e contundente. Tantas coisas são ditas e reveladas para romper o verniz da língua (ortografia) e atingir a alma dela (semântica), explicitando presente e passado distante – protopassado.

Que pensar de línguas, como o Tupi (reconhecido como Língua Geral do Brasil), que foram com o tempo encobertas e/ou substituídas pelo português, não de maneira natural ou espontânea, mas sob o ataque e sotaque do colonizador e catequizador, do Santo Império e da Santa Igreja?

Povos originários e negros traficados em navios negreiros, feitos presas e/ou escravizados, sob “a mesma dicção de aporia, a camuflar, soterrar, degenerar com o perfume da flor vulgar” – qual seja – “a última flor do Lácio”.

Aqui, o poeta dá nome aos bois, ou melhor, à língua e a seus falantes. O tempo todo o autor estava (está) nos falando (a nos falar, como se diz em Portugal) sobre a Língua Portuguesa, autodenominada “a última flor do Lácio”, porque a derradeira das línguas neolatinas, que tiveram o latim vulgar como língua-mãe.

Flor a nos embriagar – continua o poeta – com seus acentos, desacordos ortográficos e sua oceânica pretensão lusofônica… Flor a nos embriagar, à afasia – insiste o poeta –, com seus acentos, desacordos e pretensão universalista!

Lusofonia que, oficialmente, diz respeito à qualidade dos que são lusófonos, ou seja, que falam o português. Lusofonia que, na acepção quantitativa, envolve a comunidade dos povos e nações que compartilham a língua e cultura lusitanas, entre os quais Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste.

Ou lusofonia – protesta Edson Cruz – como forma de os outros (indígenas, negros, caboclos, minorias, etc.) serem apropriados pela língua (fonia) e pelos barões assinalados (lusos). Como eternizou Luís Vaz de Camões!

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Almir Zarfeg – poeta e jornalista – é presidente de honra da Academia Teixeirense de Letras (ATL).

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