Jovem encara rotina de estudos em casa sem energia elétrica e tira 980 na redação do Enem

Matheus de Araujo Moreira Silva, de 25 anos, moradores de Feira de Santana, na Bahia, tirou 980 na redação do Enem 2020 — Foto: Arquivo Pessoal
Matheus de Araújo Moreira Silva, de 25 anos, moradores de Feira de Santana, na Bahia, tirou 980 na redação do Enem 2020 — Foto: Arquivo Pessoal

Matheus de Araújo Moreira Silva, de 25 anos, quase atingiu a nota máxima na prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2020 com 980 pontos. Para alcançar a nota, o jovem morador de Feira de Santana, a 100 quilômetros de Salvador, estudou em uma casa simples, emprestada da amiga, sem energia elétrica e internet para se preparar para o exame.

“Muita gratidão a Deus quando vi essa nota. Estudar de tarde, no calor, com máscara, quando vi [a nota], quase gritei. Foi uma alegria imensa!”, disse.

O jovem, morador de um bairro periférico de Feira de Santana, filho de pais analfabetos, sonha cursar medicina. Para o vestibular, Matheus precisou superar algumas barreiras. Ele estudava na biblioteca municipal da cidade, mas com a pandemia, o local precisou ser fechado. Com isso, ele parou os estudos por um período. Segundo ele, em casa, com os pais e mais quatro irmãos, não era possível se concentrar.

“Ser vestibulando de medicina é difícil, porque não tem controle de nada. Você estuda e a possibilidade de reprovação é gigantesca, aí vem a pandemia que modifica tudo, tira seu local de estudos, você fica sem chão”, conta.

Foi então que em julho do ano passado uma amiga emprestou uma casa simples para que ele pudesse estudar. Porém, o local não tinha energia elétrica e ventilação adequada. No novo local de estudos, também não havia internet. Ele precisou assinar um pacote de internet pelo celular.

“Por um tempo, pensei em desistir. Para estudar tem que ter silêncio, era muito complicado estudar em casa, por causa do barulho. Uma amiga aqui do bairro me emprestou essa casa, que estava sem ninguém. Porém, não tinha energia, era uma casa bem simples”, conta.

“Comprei uma cadeira, uma mesa e estudava lá pela tarde. Lá só tinha água, não tinha energia e a ventilação não era boa. Quando eu ia pra ‘casinha’, usava os dados móveis. Tinha que usar pouco para não acabar”, disse.

Estudante de escola pública, Matheus sempre desejou estudar medicina desde que concluiu o ensino médio, em 2013. Em 2015, ele foi aprovado no curso de enfermagem na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Mas, depois de dois anos, trancou a faculdade, o que ele considera uma “uma decisão da vida”, e desde 2018 se dedica a estudar para passar em medicina.

“Fui o primeiro da família a entrar na faculdade na época, na Uefs, depois de três vestibulares. Em dois anos tinha estabilidade, fazia parte de núcleos de pesquisa, pensava fazer mestrado em enfermagem. Porém, quando comecei o estágio, vi que não era aquilo que eu queria, mas a enfermagem foi uma experiência extraordinária. Minha mãe quase me matou. Mãe doméstica e pai pedreiro. Para eles, largar uma faculdade pública foi muito complicado”, relembra.

O desejo de trancar enfermagem e focar em medicina surgiu dentro da própria casa. Um dos irmãos de Matheus teve sequelas após contrair meningite e precisa de cuidados médicos desde então.

“Escolhi medicina porque tenho interesse no corpo humano, mas o motivo maior é o meu irmão. Ele teve sequelas de meningite meningocócica, e esse foi um dos motivos maiores. Acordei um dia e pensei: ‘posso fazer mais’”, lembra.

Matheus de Araujo Moreira Silva, de 25 anos, moradores de Feira de Santana, na Bahia, tirou 980 na redação do Enem 2020 — Foto: Arquivo pessoal
Matheus de Araújo Moreira Silva, de 25 anos, moradores de Feira de Santana, na Bahia, tirou 980 na redação do Enem 2020 — Foto: Arquivo pessoal

Preparação para a prova

Para o Enem, Matheus estudou sozinho, cerca de seis horas por dia, de segunda a sexta, e também nos finais de semana, por meio de apostilas e videoaulas online.

“Estudava das 13h até as 17h. Ficava até essa hora por falta de energia, mas quando eu estava muito empolgado, ligava a lanterna do celular e estudava até as sete da noite”, conta.

Há cerca de dois anos, ele passou a dar aulas de reforço escolar para pessoas do próprio bairro, para gerar renda e pagar as apostilas e plataformas de preparação para o Enem.

“Dava aula de reforço no bairro, se tivesse alguém com dificuldade em biologia, história, ou redação. Eu cobrava barato, no mês todo, cobrava R$ 50, um valor simbólico mesmo, para ajudar a pagar cursos online e materiais que precisava. Algumas pessoas não tinham poder aquisitivo porque o bairro onde moro é bem simples, aí eu nem cobrava nada”, disse.

Com a pandemia dando sinais de que não iria passar, o jovem passou a estudar de máscara, mesmo sozinho na casa emprestada, para simular o cenário encontrado pelos candidatos no dia da realização da prova.

“A maior dificuldade foi manter a concentração, porque a temperatura era muito quente. Tinha que fechar a janela e a porta da frente para não entrar barulho. Quando vi que a pandemia não iria passar, comecei a estudar com máscara”.

“Estudar com máscara, em um lugar quente, sem ventilador e energia, era absurdo. Só podia estudar com a luz do dia. De vez em quando, para fazer alguma questão, ligava a lanterna do celular e estudava”, conta.

Para se preparar para a redação no Enem 2020, no qual o tema foi “O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”, Matheus fez cerca de 50 redações no ano passado, sobre diversos temas. Além disso, pra aumentar o repertório de conhecimento, ele conta que assistiu filmes e documentários.

“Assistia filmes, documentários, via notícias, e tudo que era interessante eu anotava. Ficava sempre anotando palavras, citações no meu caderno. Escrevi sobre tudo, várias temáticas”, afirma. Na redação que tirou 980 no Enem de 2020, ele citou autores como o filósofo polonês Zygmunt Bauman e a filósofa alemã Hannah Arendt.

Apesar de toda preparação e do bom resultado na redação, Matheus conta que a prova do Enem 2020 foi mais difícil que em outros anos, principalmente para alunos de escola pública.

“Devido à pandemia, achei que a prova seria mais tranquila, mas foi no nível um pouco alto. Acredito que um aluno de escola pública, que está no 3º ano, para fazer essa prova, não consegue de forma alguma. Achei uma prova desleal com o aluno de escola pública”, relata.

Matheus de Araujo Moreira Silva, de 25 anos, moradores de Feira de Santana, na Bahia, tirou 980 na redação do Enem 2020 — Foto: Arquivo pessoal
Matheus de Araújo Moreira Silva, de 25 anos, moradores de Feira de Santana, na Bahia, tirou 980 na redação do Enem 2020 — Foto: Arquivo pessoal

Futuro pós-Enem

Além de redação, ele conta que teve boas notas em todas as outras provas do vestibular. Matheus já se inscreveu para a 1ª edição do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) 2021, que oferta vagas em universidades públicas do país. Mas ele acredita que consegue passar no curso de medicina em universidades baianas apenas no segundo semestre deste ano.

“Olhei as faculdades, os pesos, e acredito que no Sisu do meio do ano há uma grande possibilidade de conseguir aprovação. Nesse agora, me inscrevi, mas estou procurando manter os pés no chão e esperar o resultado. Acredito que virão coisas boas”, conta.

Ao ser questionado sobre os planos caso não passe em medicina, Matheus foi enfático: “o ano da minha aprovação é esse”. Com os pais desempregados, para continuar os estudos, ele pretende continuar dando aulas. Ele também lançou uma “vaquinha” virtual para arrecadar dinheiro para comprar um notebook e outros materiais de estudos.

“Você tem que acreditar nos seus sonhos, porque se você não acreditar, ninguém vai acreditar. Tem uma frase que sempre utilizo: a educação modifica vidas, assim como Jesus modifica o nosso interior. Focar, acreditar e ter fé, que em algum momento, a vitória vai chegar”, conclui Matheus.

Fonte: G1

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