Não é sobre grupos, mas sobre indivíduos. Não é sobre verdades absolutas, mas sobre verossimilhança. Em Hermenêutica da Desigualdade: uma Introdução às Ciências Jurídicas e também Socais (Del Rey: 2019), Taurino Araújo oferece teoria para discutir a fundo questões como humanismo, etnocentrismo, alteridade, relações de parentesco, família e propriedade, pluralismo e multiculturalismo e políticas públicas separando os campos da epistemologia (ciência), da doxa (simples opinião) e até mesmo o Mito da caverna, de Platão: “os homens não nascem presos, alguém os aprisiona”…
Retomo a linha do tempo entre o humanismo clássico e o humanismo “aberto, democrático e universal” de Lévi-Strauss, conforme propõe Regina Paulista Fernandes Reinert, tudo através daquela ordem inicialmente sofística que subjaz a pluralidade cultural, mas confere o universal almejado pela cientificidade, análise da função simbólica e exame da passagem entre natureza e cultura, relativização da verdade em contraponto ao fazer meramente dogmático, bem como a complexificação do direito e da vida como um todo nas sociedades complexas, humanismo que igualmente “proíbe que se conheça o homem primitivo (sociedades ágrafas) por oposição ao homem civilizado (sociedade escrita), mas exorta que as investigações possam conduzir à compreensão de todos os povos por meio de suas culturas” ao reverenciar-lhes as singularidades.
Há, portanto, retomada histórica daquele instante no qual, a um só tempo, surgiram retórica (tão cara ao Direito) e democracia de participar e conseguir votos, ou seja, revisitação do humanismo desde as suas origens gregas passando pela Renascença e por Lévi-Strauss, através da construção de narrativa consagradora das diversidades culturais consolidando numa só tacada o direito à diferença, a participação política e o imperativo de falar por outrem nas democracias representativas, os mecanismos mínimos de racionalidade capazes de suprir o déficit de legitimidade democrática das decisões judiciais a que se refere Rafael da Silva Rocha em Teoria da argumentação jurídica aplicada à atividade jurisdicional, decorrentes de sua devida fundamentação, sub censura.Tal ocorre quando, cientifica e ordenadamente, Taurino se desprende do contingenciamento histórico de como era — e tem sido — a lei dos livros (law in the books), na qual, v.g, o racismo estrutural e outras formas de discriminação, dissimulados, se inserem. Na prática, diria Antonio Menezes Filho, que Taurino Araújo retoma para si função das ciências sociais e da filosofia antes entregue à literatura (Antônio Cândido) qual fosse a de suprir lacuna histórico-cultural e identitária com vistas à autoevidência desse direito, lembra Mario Nelson Carvalho, concretizadas “as possibilidades individuais e coletivas de superação” ao se referir à Hermenêutica da Desigualdade como sendo um método que não apenas as identifica, mas as diminui.
Para compreender esse direito decorrente da normatividade e dos livros em contraponto ao direito processual, da ação, do qual Taurino Araújo se vale para dinamizar a sua teoria, preciosas são as conclusões propositalmente grosso modo de Luís Roberto Cardoso de Oliveira: a perspectiva normativista [law in the books] se caracteriza pela ênfase no poder de determinação das normas na definição do resultado das disputas, ao passo que a posição processualista [law in action] superestima a importância das relações de força, através da qual o poder (força) relativo das partes e a respectiva capacidade de [“manipulação tecnológica”], considerados os fatores decisivos em tal definição.
Tal diagnose avança ante a distinção entre epistemologia e doxa empreendida por Taurino Araújo. Nesse particular, ele toma emprestado de Lévi-Strauss a herança sofistica de enfatizar e de suprimir a força de certos argumentos, traduzida em relativismo cultural, inclusive do direito. Trata-se, igualmente, de apreender o mundo em sua diversidade, inclusive a da produção legiferante que deveria ser mais processual (“a luta faz a lei”) e menos normativa.
Para Lídia de Teive e Argolo: “O reconhecimento das desigualdades é condição para lidar com as mesmas e, nesse processo, evitar a permanência de sua naturalização e reprodução. Aproximar a teoria jurídica desta compreensão revela-se como de fundamental importância para a garantia de um acesso mais amplo à cidadania. Para tanto, o que Hermenêutica da Desigualdade evidencia através do estudo da desigualdade é que este reconhecimento não se dá mediante a consideração da estrutura jurídica ou das ações jurídicas separadamente”.
Há, portanto, um funcionalismo eclético na perspectiva do humanismo em Taurino Araújo. Daí a importância de se destacar, dos pontos de vista ontológico, epistemológico, lógico e axiológico que, apenas à primeira vista, “a figura do receptor também protagonista” integra par binário levistraussiano quando, na verdade, constitui superação valorativa, na postulação de Bernard Jackson, decorrente, isto sim, da mescla de dois pares “paradoxalmente” reunidos por Taurino Araújo, em sua constante validação “afora o conceito de verdade absoluta” com a qual concebe sua epistemologia genuinamente brasileira.
Em síntese: o humanismo de Taurino Araújo “aponta para a possibilidade de concretizar o acesso à justiça em termos de efetiva defesa e concretização de direitos e garantias dos cidadãos através do reconhecimento das suas singularidades”, mas isso se dá em duas frentes distintas: a primeira implica percorrer toda a estrutura realidade-dogmática-zetética-dogmática para construir decisões mais factíveis, racionais e justas e a segunda consiste em enfatizar a construção da figura do “receptor também protagonista” do próprio fazer social, eis que a propalada racionalidade universalizante da verdade absoluta (aletheia) possui sérios limites, máxime, quando desconsidera o real de tantas opiniões (doxa), para “a diminuição efetiva e concreta das distâncias”, ponto de partida da sua Hermenêutica da Desigualdade.
Por Camilo de Lélis Leite Matos Sociólogo, cientista político e professor [email protected]