Aconteceu há dez dias com um amigo que morava numa cidade de cinquenta e um mil habitantes. O casamento de quarenta anos e sua energia de viver, tudo foi embora levado pelo coronavírus. Eles haviam levado muitos anos para transformar a casa não só num lugar habitável, mas lindo. As horas que eles passaram juntos cobertos de gesso e tinta. Os dois eram cuidadosos, por terem vivido num lugar em que as pessoas roubariam a dentadura de dentro da boca da sua avó, então era preciso proteger o pouco que se tinha.
Não são as grandes crenças mas as pequenas, as que se acumulam, uma sobre as outras, como um iceberg gigante de enganação (não uso da máscara, negação a vacina, a falsa segurança de morar em uma cidade pequena, desinformação). Quando isso explodia, aí sim você estava na merda. Somos reis do mundo visível, em torno de nós tudo é mais baixo, mas o invisível do mais baixo, “este vírus”, é um longo arrastar em direção a um destino incerto.
Na sua passagem pela vida, confundem-se à distância todos os traços, suas quatro filhas criadas com rigor e severidade, hoje mulheres bem sucedidas, mas o nevoeiro da falta de entendimento, a teimosia, que envolve tudo na mesma claridade enganadora e opaca, tentaram de tudo para ele tomar a vacina não quis, mas sua esposa tomou, foi mais sensata e ficou a sombra, protetora da vacina.
Os dois estavam com o vírus obrigando-os a irem para um centro maior, ela não precisou ser internada e ele passou 25 dias na UTI e faleceu. A mente fechada levou a isto. A ausência vai doer no peito como uma pedra. Sentirão sua falta em todas as horas, por enquanto olharão tanto para o passado que ele cegará o momento presente.,
*João é natural de Salvador, onde reside. Engenheiro civil e de segurança do trabalho, é perito da Justiça do Trabalho e Federal. Neste espaço, nos apresenta o mundo sob sua ótica. Acompanhe semanalmente no site www.osollo.com.br.
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