Diário

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Foi no aniversário de quatorze anos que ganhei meu primeiro diário com capa dura e cadeado. O presente foi ideia de meu pai. Nesta época tudo de meu pai prendia minha atenção, o seu tipo de óculos, seu paletó, sua forma de tomar a sopa. Cada gesto era naturalmente preciso e delicado a manifestar reverência pelas coisas mais simples, típico de quem sabe que a vida não é fácil, mas sempre reserva poderes restaurativos.

Quando meu pai estava escrevendo, todas estas características ganhavam intensidade, dando-me a impressão, pelo modo como ele conduzia a máquina de datilografia no papel, de que a escrita era algo tremendamente importante.

No começo tive dificuldade para saber o que anotar no meu caderno. O hábito de se fazer do diário uma espécie de confidente ainda não havia despertado meu interesse. Eu também não via sentido em registrar o cotidiano. Mas depois quando li “O fio da Navalha”, de Somerset Maugham, foi que entendi que um diário poderia ser o espaço para se guardar reflexões e ideias sobre questões prementes.

Na época, nenhuma outra cena do livro me marcou tanto como o momento em que é dito “Mesmo que ao meio-dia a rosa perca a beleza que teve na madrugada, a sua beleza naquele momento foi real, nada no mundo é permanente, e somos tolos em desejar que algo dure para sempre, mas seremos mais tolos ainda, se não apreciarmos a beleza enquanto a temos”.

Retornei o costume do diário na pandemia. Embora muita coisa tenha mudado desde a minha adolescência, mas o meu diário cumpriu uma série de funções, citações, poesias, registro de opiniões, listas .etc.

Meu pai estava certo. Escrever para mim mesmo, com o intuito de refletir sobre o que se passa na minha vida e com os meus próprios sentimentos, acabou me ajudando a eleger prioridades, reavaliar situações e escapar de enrascadas. Assim, mesmo que, em algum momento, estes cadernos venham a ser destruídos, mas eles me ajudaram a pensar.

Gosto de abrir os cadernos dos anos anteriores e perceber como algumas das minhas ideias e relacionamentos começaram a tomar forma sem que eu ainda fizesse a mínima noção do que estava para acontecer. Muitas vezes, inclusive, recorro aos diários para reelaborar questões.

Em um de seus ensaios, Hannah Arendt faz o seguinte comentário: “Tudo que vive por mais forte que seja sua tendência natural a orientar-se para a luz e para Deus, precisa da segurança da fé para poder crescer.”

Eu sempre acreditei que as palavras fossem dotadas de vida. Talvez, por isso mesmo, nunca duvidei de que elas também precisassem de tempo e espaço para germinar em segurança , em nossos diários, antes de serem finalmente postas no mundo. Meu pai morreu em 01 de maio de 2018, e deixou esta experiência do diário comigo, e no diário também escrevi para entender sua partida.

João Misael Tavares Lantyer

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