Crônica 20 – ESPERANÇA; por prof. Naomar Almeida Filho

Crônica 20 - ESPERANÇA; por prof. Naomar Almeida Filho
Naomar Almeida Filho (Foto: Renato Velasco)

Para contar o que vimos, vivemos e realizamos na UFSB, escrevi uma série de crônicas e as arrumei neste livro. É hora de fazer um balanço do que escrevi. Tenho certeza de que, afinal, avançamos. E minha esperança é que avançaremos ainda mais.

Nas primeiras crônicas, comecei escrevendo sobre valores e princípios, o que, para alguns, pode ter parecido grego ou javanês, fora de moda e fora de hora. Contei depois como concebemos e elaboramos o Plano Orientador da UFSB, abertamente anisiano, inspirado numa UnB quase mítica, aquela que fez história por ter sido duramente golpeada pelo totalitarismo militar. Avaliando as tensões iniciais, algumas profundas e outras mais leves, busquei refletir sobre os efeitos provocados pelas escolhas que tivemos que fazer. E é disso que se trata. É de escolhas que estamos falando, sempre.

Que modelo pedagógico caberia numa arquitetura curricular pensada para ser orientada por escolhas? Como um modelo de governança compartilhado e participativo (portanto, promotor de escolhas) poderia sobreviver numa estrutura de gestão contida por barreiras legais, normas funcionais e matrizes mentais? Como uma moderna cobertura digital poderia promover a arcana territorialidade, numa ecologia de saberes verdadeira e viável?

Falei com entusiasmo dos primeiros sucessos e das grandes expectativas. E do esforço para montar uma equipe coesa e fraterna. Para superar tantas crises, reais e imaginárias, precisávamos de audácia e apoio; sem isso, sequer teríamos começado. E começamos. E avançamos. Neste momento, avalio que pagamos caro por essa ousadia. Não foi por falta de advertência: não posso esquecer a premonitória Aula Inaugural em Porto Seguro, quando Boaventura de Sousa Santos avisou-nos que os inimigos das novas ideias nem sempre vêm de fora, podem estar dentro e por perto, homens e mulheres formados em lugares que continuam os mesmos, há muito tempo.

Nas crônicas seguintes, avaliei nossos problemas iniciais, provocados por ambições, retrações, reversões e já pequenas traições, com uma pitada amarga de hipocrisia. Dei destaque a uma polêmica serendipidade, que ganhou o lindo nome de Experiências do Sensível, componente curricular de formação geral que produziu as primeiras escaramuças entre Artes e Ciências. Comentei o fenômeno paranormal de recusa das tecnologias, em que (auto-supostos) grandes nomes da (sua própria) ciência negavam porque negavam o choque cultural pelo qual estavam passando; em nada fiquei surpreso ao ver doutos mestres recusando a humildade (sem sequer desconfiar), na soberba de que nada mais tinham que aprender. E falei abertamente sobre o pior que aconteceu: o forte e orquestrado bloqueio ao nosso ensaio de democracia comunitária compartilhada, quando avançamos na formação do Conselho Estratégico Social da UFSB e, enfrentando resistências, insistimos no planejamento, preparação e realização do I Fórum Social da Região Sul da Bahia. O passo seguinte, organizar um Congresso Interno para apreciar moções e demandas dos povos do território, mais do que bloqueado, foi sabotado. Ironia suprema: a representação popular parecia ter se tornado um problema para a universidade popular.

Apesar dos constrangimentos do contexto de crise nacional, persistimos, tentando avançar, especialmente no que se refere à abertura de vagas nos Colégios Universitários da UFSB e à sonhada integração com a Educação Básica. Em retrospecto, acho que erramos. Confiamos demais, apostando no apoio e engajamento político dos que se haviam declarado parceiros. E pagamos caro por esses equívocos. De fato, encontramos pouca colaboração, muita gente talvez sinceramente se esforçando para compreender o que dizíamos, mas, quando entendiam, somente falavam do que não se podia fazer e, quando não entendiam, faziam por conta própria o que lhes parecia menos trabalhoso. Dessa maneira, minaram pouco a pouco um projeto de mediação tecnológica que nos teria tornado uma universidade contemporânea e mais eficiente; desconstruíram um modelo de ensino-aprendizagem que viabilizaria uma universidade no espírito freireano mais radical; bloquearam movimentos de ampliação do acesso que nos consolidariam como uma universidade de fato popular; desplantaram a semente de sustentabilidade que, num momento fugaz, nos teria levado a ser uma Universidade da Mata Atlântica. Aprendi que, quando almas pequenas se unem, nada grandioso surge: somam pequenez. (Fiquei tentado a propor um novo conceito, de inspiração peirceana, uma tal de ‘pequenidade’; mas recuei frente à tentação, pois daria um fiapo de dignidade ao que já rima com mesquinhez).

E, finalmente, com grande pesar, passei a escrever sobre uma cadeia de palavras bem conhecida dos brasileiros, nesses tempos sombrios de mediocridade, corrupção, cinismo e hipocrisia: boicote-bloqueio-sabotagem-conspiração-traição-golpe. Revisei esses termos meticulosamente, neste registro de cuidado com as palavras, tentando entender os sentidos atribuídos aos significantes. A partir de exemplos que rigorosamente respeitam o anonimato de boicotadores, sabotadores, conspiradores, traidores e golpistas (um cronista tem a prerrogativa de dar nomes somente para o bem, deixando desonrados para trás) – mostrei que boicote é um não-ato, em plena passividade, não-fazer algo ou deixar de usar algum produto ou dispositivo, ao passo que bloqueio representa uma tentativa de se mover para barrar ou criar obstáculos para algo (novo, incerto, inseguro, uma ousadia, um movimento, a história); que conspiração implica sequência articulada de atos performativos para viabilizar metas escusas, fins vergonhosos ou até criminosos; e que a ação conspiradora é necessariamente desonesta, insidiosa, escondida, de certo modo processual, em leve contraste com (e em complemento a) o ato, em geral abrupto, que se chama traição e que, em muitos casos, como acredito ter ocorrido na UFSB, pode coroar uma conspiração.

A crônica sobre o golpe foi difícil de escrever, confesso e digo porquê. Primeiro, tentei delimitar o conceito de golpe como ato planejado de tomada do poder, mais ou menos violento, em qualquer nível de governança. O golpe de Estado clássico em geral resulta de força militar, aplicada por atores externos, contra lutas revolucionárias, ou por antagonistas em um dado processo político. Nessa crônica, ressaltei que o tipo de golpe mais frequente nas atuais democracias representativas resulta do tripé sabotagem-conspiração-traição. Fazê-lo de modo legalizado ou democraticamente justificado não muda nada da violência simbólica de um golpe político. Nesses casos, tal como Frank/Claire Underwood em House of Cards e Michel Temer na história política brasileira recente, a figura de vice aparece como ator preferencial do processo político conspiratório e golpista. Dilma Rousseff foi sabotada pela baixa elite nacional, traída por membros do seu governo liderados pelo vice-presidente, mediante vil conspiração na sua base política, viabilizada por avassaladora corrupção e distribuição de cargos e verbas; sofreu um golpe legal, disfarçado por um processo político de impeachment legitimado por um congresso democraticamente eleito.

Naquela crônica, explorei os subterrâneos dessa analogia com base no que ocorreu, em escala bem mais restrita, nesta universidade. Contei como o nosso projeto de universidade popular foi sabotado pela baixa elite acadêmica, traído por membros da própria reitoria, numa conspiração viabilizada por distribuição de cargos e verbas, e sofreu um golpe institucional, disfarçado pela convocação de uma eleição apressada, com cartas marcadas e acordos firmados. Denunciei a conspiração-traição-golpe ao pedir exoneração, em Carta Aberta que viralizou nas redes sociais. Confirmando a denúncia, a vice-reitora e um pró-reitor da minha ex-equipe se lançaram candidatos numa chapa à Reitoria, no processo eleitoral por eles conduzidos, mantidos nos respectivos cargos.

Saudades: dos bons debates sobre como implantar um campus sustentável, ensolarado e brisento, em blocos irregularmente pentagonais, quase sem ecos e ressonâncias, cheios de pesquisa, criação, trabalho, aprendizagem e alegria. Orgulhos: de quando levava visitantes, visivelmente impressionados, para conhecer e participar dos ricos momentos de diálogo, debate e formação na consolidação dos Colégios Universitários e na criação dos Complexos Integrados de Educação. Tristezas: das dificuldades e malentendimentos dos que pensavam quadradamente, competentes levantadores de obstáculos, legais e triviais, dedicados e eficientes especialistas em criar impossibilidades.

Esperanças: em docentes e servidores técnico-administrativos que conseguem superar as tentações desse contexto corrompido por uma cultura política do individualismo, da inércia e do patrimonialismo. E muitas esperanças: nos estudantes que chegam céticos e desconfiados, às vezes confusos, mas aprendem rápido o que é vivenciar uma universidade, valorizam a aprendizagem que permite escolhas, sentem-se acolhidos, mobilizados e respeitados e se apaixonam pelos sonhos coletivos. Essas esperanças se confirmam na constatação de que não são poucas as pessoas dedicadas que conseguem encontrar alegria e realização nesse desafio cotidiano de fazer funcionar bem uma instituição verdadeiramente educadora.

Para encontrar mais esperanças, gostaria de melhor entender raízes e impactos desse processo tão doloroso de criar instituições de conhecimento de fato comprometidas com a transformação da sociedade em contextos de inércia e conservadorismo. Sigo pensando, realmente intrigado. Por que tantos receiam mudar, ousar, crescer, conviver, compartir, confiar? Por que algumas pessoas se mostram tão temerosas? Por que tanto medo? Notem que por suposto essa hipótese do medo é otimista, ao considerar de modo compreensivo a natureza humana: pessoas resistem, sabotam, traem, conspiram por receio do que lhes poderia acontecer num contexto de mudança radical. Mas podemos igualmente pensar em hipóteses mais cruas sobre o que move sujeitos em processos micro-políticos dessa natureza.

Antes de concluir, e sempre no registro das esperanças, cabe acrescentar uma anotação certamente datada, porém de suma importância. Durante a escritura dessas crônicas, um grupo de professores, estudantes e servidores técnico-administrativos se reuniu para discutir o futuro da UFSB. Ao verificar que o processo de escolha de dirigentes havia sido confirmado, regulamentado e conduzido justamente pelos atores envolvidos no golpe que denunciei (que, como vimos, se confirmaram como candidatos), esse grupo decidiu organizar uma chapa para concorrer à Reitoria da UFSB. A chapa se chama Diversidade, Diálogo e Bem-Viver, anunciando um programa de trabalho convergente com o projeto da universidade popular de raízes anisianas-freireanas-miltonianas. Mesmo denunciando a legitimidade do processo eleitoral em curso, na condição de docente da instituição, tornei público meu pleno apoio a esse movimento, onde vejo traços de um futuro no qual deposito esperanças e empenho energias. Espero uma bela vitória, vencendo a conspiração e barrando o golpe. Constato com alegria que esse grupo toma o projeto da UFSB em suas mãos, o que me tranquiliza nesse movimento de afastamento que agora inicio, pretendendo me concentrar na reflexão crítica e na produção acadêmica sobre essas ricas experiências. Estarei à disposição para apoiar e encorajar essas pessoas que se revelam corajosas e responsáveis, porém não participarei da futura equipe de gestão. Precisamos lutar muito, face à situação do país e da nossa universidade, tão ameaçada, mas resistindo. Tenho certeza de que assim poderei muito melhor contribuir, no papel de professor e pesquisador, mas livre dos encargos da gestão universitária.

Chegamos ao final desta crônica. Dilemas cartesianos, movimentos anisianos, processos freireanos, sujeitos miltonianos, crises juninas. Na verdade, são apenas histórias típicas desses tempos tão estranhos. Refleti muito para escrever essas crônicas, ao compartilhar com leitoras e leitores pensamentos e sentimentos que me atravessaram nesses momentos de ameaça e desconstrução de um projeto coletivo, a mim tão caro. Aprendi bastante ao escrevê-las, praticamente em diálogo com muita gente que se interessou pelos destinos desta brava e pequena universidade. Agradeço a quem me acompanhou até aqui, curtiu, comentou, criticou, compartilhou, solidarizou, sofreu junto. A esses/as, prometo mais palavras de esperança.

 

 

Prof. Naomar Almeida Filho

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