Deficiências na estrutura e treinamento da polícia colaboram para que poucos casos resultem em inquéritos instaurados e investigações que punam os culpados dos crimes
“Ele chegou lá e colocou o pinto para fora?”, quer saber a delegada. “Foi”, diz, secamente, a adolescente de 13 anos, vítima de abuso sexual. “Ele rasgou sua camisa querendo ver seu peito”, continua a policial. “Eu fui entrando e ele foi logo me agarrando”, é a resposta da menina, seguida de outra pergunta: “Ele segurou em que parte de seu corpo?”. “Meus peitos”
O diálogo aconteceu na última quarta-feira, dia 30, quando a adolescente é obrigada a relatar o momento mais constrangedor de sua vida – o dia em que foi atacada pelo “avô de consideração” (pai de sua madrasta). Em uma sala da Delegacia Especializada de Repressão a Crimes contra a Criança e o Adolescente (Derca), a delegada titular Ana Crícia Macedo, durante 20 minutos, fez e refez as perguntas sobre o crime. Depois, repetiu as respostas para o registro em letra fria do escrivão, um homem de cerca de 30 anos, que estava diante da vítima.
De acordo com especialistas, esse modelo de condução de inquéritos sobre abuso sexual de menores está na raiz de um paradoxo enfrentado pela polícia baiana: um alto número de denúncias e a baixa quantidade de inquéritos instaurados e investigações concluídas no estado.
De acordo com os números da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH), a Bahia lidera as denúncias de abusos sexuais, com 962 casos, e de exploração sexual, com 250. Mas, ainda assim, não há número preciso sobre o resultado efetivo das queixas, através de inquéritos instaurados, e das punições impostas aos agressores. Sobretudo por deficiências no treinamento daqueles que são destacados para apurar os abusos, sempre revestidos de situações delicadas e de difícil condução.
Especialização
A delegada Ana Crícia reconhece não ter treinamento para evitar aumentar o trauma de uma criança vítima de violência sexual. “Não existe (treinamento). As vitimas são ouvidas pelas delegadas. Treinamento específico não tem. É uma situação constrangedora, é verdade”, afirmou a policial.
Após a adolescente, a próxima da fila era uma criança de 5 anos. Foi deflorada por um tio com o dedo, antes de receber um tapa de sandália em sua genitália. Cada vítima de violência sexual passa pela via-crúcis de reviver na memória os momentos de terror por, pelo menos, três vezes. A primeira, é a mais invasiva.
Na sala principal da delegacia, a criança e seu responsável relatam o crime na frente de todos os policiais e de outras vítimas que também aguardam atendimento.
“O que mais me incomoda aqui é que falta esse profissional lá da frente para receber essas pessoas. Muitos deles vêm de outras delegacias, mas aqui o atendimento é de situações especiais. Não se pode lidar com uma situação dessa como se fosse uma coisa comum”, reclama a assistente social Marivalda Nascimento. Às quartas, quintas e sextas-feiras, das 10h às 18h, ela ajuda a colher, na delegacia, as queixas dos casos mais graves e dá as primeiras orientações à família para amenizar o trauma.
A Derca é a única delegacia especializada para crimes a crianças e adolescentes do estado. Possui quatro delegados plantonistas para investigar cerca de 4 mil queixas-crime e mais de 2 mil denúncias anônimas sobre os mais diferentes tipos de violência contra menores. “Não dá, a delegacia está bastante ultrapassada. A demanda é muito maior do que é possível apurar. São cinco delegadas, o que impossibilita a investigação desse grande número de denúncias anônimas. Não tem como viabilizar a apuração de todos os casos”, reconheceu a titular.
Apuração
Os casos chocantes são protagonizados por parentes próximos das vítimas, o que torna a denúncia ainda mais difícil para a criança. Nos casos em que a família vence a barreira do medo e vai até a delegacia prestar queixa, o exame de corpo de delito realizado na vítima, bem como seu depoimento, servem como provas que colaboram muito pra a condenação do agressor. É o caso do garoto X, de 3 anos, que no dia 29 de abril foi violentado dentro de casa pelo irmão paterno de 15 anos. “A gente tratava ele como filho, só andava em minha casa”, rememora a mãe. O agressor é filho de seu marido com outra mulher.
“Ela (a mãe) nega que aconteceu, esconde ele. Se vier aqui de novo, eu juro que mato”, exaltou-se o pai. A criança ficou 12 dias em um hospital de Salvador devido a infecções no ânus. Com o resultado da perícia técnica e o depoimento de vizinhos, o inquérito já foi concluído e enviado à Justiça, que deve marcar a primeira audiência ainda neste mês, conforme assegurado à mãe.
Barreira
Nos casos dos crimes denunciados pelo Disque 100, ferramenta que facilita a denúncias de abuso sexual e violência doméstica, os investigadores da Derca encontram a maior dificuldade. Segundo dados do Centro de Apoio da Criança e do Adolescente (Caoca), do Ministério Público, entre 2008 e o primeiro trimestre de 2011 foram recebidas 5.757 denúncias pelo telefone. Destas, 479 estariam em apuração e somente 56 foram finalizados e enviados à Justiça. “É absolutamente desproporcional. Enquanto existe um crescimento de denúncias, é tímido o número que são apuradas”, reclama a coordenadora do Caoca, a promotora Eliana Bloizi.
Audiências sem danos psicológicos
Juizes de toga, promotores e defensores de paletó e gravata. É nesse ambiente que a criança vítima de violência sexual é obrigada e relatar os detalhes do ato. Para evitar este novo trauma, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou, em 2010, todos os tribunais do país a se adaptar ao modelo de “depoimento sem danos”. Neste sistema, a criança não entra numa sala de audiência. Seu depoimento é colhido em uma brinquedoteca por uma psicóloga.
A conversa é acompanhada via videoconferência por promotor, juiz e advogados. Na Bahia, há dois ambientes assim, mas os depoimentos ainda são colhidos como audiência devido à falta de micro-câmeras. O sistema tem resistência do Conselho Brasileiro de Psicologia. A psicóloga Sandra Amorim explica que não seria atribuição da profissão as inquisições e defende a existência de um laudo pericial preparado pelo psicólogo. “Colocar o pai na cadeia prejudica a criança. Ela se sente responsável por isso”, ponderou. Segundo ela, há estudos que apontam danos psicológicos em crianças que ajudaram a incriminar o pai.
No pódio da violência
Segundo a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), a Bahia é o terceiro estado que mais recebeu denúncias de violência contra crianças e adolescentes nos quatro primeiros meses do ano. Foram 3.634 relatos, um crescimento de 49,5% se comparado ao ano passado. As autoridades ouvidas pelo CORREIO foram unânimes em apontar a campanha em peças de TV, rádio e mídia impressa com artistas famosos como um motivador do aumento de denúncias. O autor do crime hediondo, caso condenado, poderá ficar preso de 6 a 10 anos. A exploração sexual tem pena de 4 a 10 anos. Os crimes são hediondos e, portanto, não têm direito a fiança, indulto ou diminuição de pena por bom comportamento.
Inimigos íntimos
A maior dificuldade para a apuração de abusos sexuais contra menores se deve ao fato de que, segundo levantamento do MP, 69% destes crimes são praticados por familiares e conhecidos. “Normalmente é um indivíduo que aparentemente não inspira medo à sociedade. Não tem como estigmatizar”, ponderou a promotora Eliana Bloizi. Em 30% dos casos, são os próprios pais ou padrastos da vítima. Em outros 39%, avós, irmão, mãe, padrinho, primo, tio, vizinho. “Acontece o abuso, a mãe ou o parente próximo sabe, toma a iniciativa de fazer a denuncia, mas muitas vezes sofre pressão e ameaça do próprio abusador”, revelou a juíza Janete Fadul de Oliveira, da 2ª Vara Especial de Crimes Contra a Criança e Adolescente. Como os crimes são ações incondicionadas (que não podem ser anuladas por desistência do acusador), é a própria família que costuma encobrir o abusador. “Às vezes dão o endereço errado e o processo para. O oficial de Justiça não encontra o réu. A vida de uma pessoa que é acusada de crime sexual dentro de uma detenção não é fácil. Então há esse apelo da família para evitar que ele seja preso”.
A promotora Eliana Bloizi salienta ainda que na maioria dos casos os agressores são os responsáveis por manter financeiramente a família. Há casos, porém, que a monstruosidade da própria mãe torna o trauma da criança ainda mais danoso. “Quando é o agressor é o padrasto, a mãe passa a ver a criança como rival, e prefere muitas vezes não abrir mão do relacionamento do que proteger a criança, que acaba indo para uma casa, um abrigo”. Nestas situações, endossa, a mãe é indiciada como cúmplice no crime e também pode ser presa.
Fonte: Rafael Rodrigues/Correio